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3 de ago. de 2020

Lisboa de Tomas Tranströmer


jose maria rovira rusiñol

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!

"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho, maliciosamente,
"aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.

A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?


15 de nov. de 2015

Sempre :: Chico Buarque

John William Godward

Sempre
Eu te contemplava sempre
Feito um gato aos pés da dona
Mesmo em sonho estive atento
Para poder lembrar-te sempre
Como olhando o firmamento
Vejo estrelas que já foram
Noite afora para sempre

O teu corpo em movimento
Os teus lábios em flagrante
O teu riso, o teu silêncio
Serão meus ainda e sempre

Dura a vida alguns instantes
Porém mais do que bastantes
Quando cada instante é sempre

8 de nov. de 2015

Eu e a Brisa :: composição de Johnny Alf

Mica Wright

Ah, se a juventude que esta brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só pra ser um sonho
Daí então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então pra nós seria
E, depois que a tarde nos trouxesse a lua
Se o amor chegasse eu não resistiria
E a madrugada acalentaria a nossa paz
Fica, ó brisa fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar

13 de set. de 2015

ABRIL :: SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Vincent van Gogh

Vinhas descendo ao longo das estradas, 
Mais leve do que a dança 
Como seguindo o sonho que balança 
Através das ramagens inspiradas. 

E o jardim tremeu, 
Pálido de esperança. 



In : Dia do mar, 1947 


24 de ago. de 2015

A rendeira :: ESPÍNOLA, Adriano

Odilon Redon, 1901

Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela.
Ponto a ponto, paciente,tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento,
enquanto, entrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?



Beira-sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997

5 de jul. de 2015

Músicas :: Ana Luísa Amaral

Xi Pan

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.




Minha Senhora de Quê

20 de jun. de 2015

Por que sonhei com você esta noite? :: Philip Larkin (1922-1985)

Por que sonhei com você esta noite?
Agora a manhã penteia a cabeleireira com cinzenta luz
E lembranças batem à porta, como bofetadas no rosto;
De bruços, fito a pálida bruma
Por trás da janela.

Quantas coisas eu julgava esquecidas
e à mente retornam com estranha dor:
como cartas enviadas a alguém
que há muito anos se mudou.

--------------------
Why did I dream of you last night?
Now morning is pushing back hair with grey light
Memories strike home, like slaps in the face;
Raised on elbow, I stare at the pale fog
Beyond the window.

So many things I had thought forgotten
Return to my mind with stranger pain:
- Like letters that arrive addressed to someone
Who left the house so many years ago.


14 de jun. de 2015

Bilhete do escritor :: Dalton Trevisan (Curitiba, 14 de junho de 1925)

Loredano

"Só a obra interessa.
O autor não vale o personagem.
O conto é sempre melhor que o contista.
Vampiro sim, de almas.
Espião de corações solitários, escorpião de bote armado.
Eis o contista.
Só invente o vampiro que exista.
Com sorte, você adivinha o que não sabe.
Para escrever mil novos contos, a vida inteira é curta.
Uma história nunca termina. Ela continua depois de você.
Um escritor nunca se realiza. A obra é sempre inferior aos sonhos. Fazendo as contas percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada.
O melhor conto só se escreve com tua mão torta, teu avesso, teu coração danado.
Todas as histórias, a mesma história, uma nova história.
O conto não tem mais fim senão começo.
Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete."

Bilhete do escritor, lido na cerimônia de entrega do  Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2007

1 de jun. de 2015

Retrato antigo :: José António Lozano

(...) Era então quando fazíamos uma improvisada encenação com teias e vestidos passados de moda, papel, cartão, sedas: as nossas ilusões. Marionetes e títeres.
- Podemos começar?
- Adiante
- Quem fala?
- Adivinha com o coração, pensa com as tuas mãos. Respira pela ponta dos pés. Vês com os teus dedos?
- Onde está o meu chocolate?
- Cala e anda, bebe e cala. Fala Clara?
- Calma
- Clara!
- Chama!?
A chama da vela apagava-se. Bela chama que se extinguia numa doce impressão de revolta. Nós estávamos rígidas, tão rígidas como bonécos, tão incompreensíveis como as nossas fabulosas pistas.
Uma vela, um mínimo candeeiro e aí estavam os nossos jogos de pátios azúis e de distâncias de nuvem. Os nossos olhos de carvão e vinho reflecteriam-se nas taças de chocolate de tia Letícia: carvão, vinho (nos nossos olhos, no nosso brilho) e chocolate sobre as colecções de borboletas e cenários de roupas velhas que descem como um conto de falas ligeiras. Como escrever no círculo mágico das horas oblíquas um momento ou a intuição dum momento? Doce, pois, percorre pelos sensos a voz da casa e tudo acorda veloz, veloz como dedos finos, na sua mímica e no teatro do mundo: a nossa pequena estância.
Vagarosamente a tarde decaía e a noite antiquíssima impunha o seu desvelado sonho. Eu crescia com as minhas incomparáveis amigas na mais iluminada das excitações de seda ou antigas varandas. Era eu realmente?
fonte:  Retrato antigo. Laiovento, 1993.

6 de mai. de 2015

Dois Sonhos : Carlos Drummond de Andrade

Eugene Delacroix, 1830

O gato dorme a tarde inteira no jardim.
Sonha (?) tigres enviesados a chamá-lo
para a fraternidade no jardim.
Gato sonhando, talvez sonho de homem?
Continua dormindo, enquanto ignoro
a natureza e o limite do seu sonho
e por minha vez
também me sonho (inveja) gato no jardim

30 de abr. de 2015

Sendo quem sou, em nada me pareço :: Hilda Hilst - (1930 - 2004)

Henry Fuseli 
Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
e tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
não seria melhor ser diferente
e ter olhos a mais, visíveis, úmidos
ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.

As paisagens em ti se multiplicam
e o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
e o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
e exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.

*            *            *

In: "Exercícios" 

1 de abr. de 2015

PERFIL DE UM SER ELEITO :: Clarice Lispector

Ainda muito jovem era um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido, fora se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes, enxergando o que podia e apalpando com as mãos úmidas o que não via, o ser fora escolhendo e por isso indiretamente se escolhia. Aos poucos se juntara para ser. Separava, separava. Em relativa liberdade, se se descontasse o furtivo determinismo que agira discreto sem se dar um nome. Descontado esse furtivo determinismo, o ser se escolhia livre. Guiava-o a vontade de descobrir o próprio determinismo, e segui-lo com esforço, pois a linha verdadeira é muito apagada, as outras são mais visíveis. Separava, separava. Separava o chamado joio do trigo, e o melhor, o melhor se comia. Às vezes comia o pior. A escolha difícil era comer o pior. Separava perigos do grande perigo, e era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava. Só para pensar com susto o peso das coisas. Afastava de si as verdades menores que terminou não chegando a conhecer. Queria as verdades difíceis de suportar. Por ignorar as verdades menores, o ser parecia rodeado de mistério; por ser ignorante, era um ser misterioso. Tornara-se uma mistura do que pensavam dele e do que ele realmente era: um sabido ignorante; um sábio ingênuo; um esquecido que muito bem sabia de outras coisas; um sonho honesto; um pensativo distraído; um nostálgico sobre o que deixara de saber; um saudoso pelo que definitivamente, ao escolher, perdera; um corajoso por já ser tarde demais e já se ter escolhido. Tudo isso, contraditoriamente, deu ao ser uma alegria discreta e sadia de camponês que só lida com o básico. E tudo isso lhe deu a austeridade involuntária que todo trabalho vital dá. Escolha e ajustamento não tinham hora certa de começar nem acabar, duravam mesmo o tempo de uma vida.
Tudo isso, contraditoriamente, foi dando ao ser a alegria profunda que precisa se manifestar, expor-se e se comunicar. Passou a dar-se através da pintura. Nessa comunicação o ser era ajudado pelo seu dom inato de gostar. E isso nem juntara nem escolhera, era um dom mesmo. Gostava da profunda alegria dos outros, pelo dom inato descobrira a alegria dos outros. Por dom, era também capaz de descobrir a solidão que os outros tinham. E também por dom, sabia profundamente brincar o jogo da vida, transformando-a em cores e formas. Sem mesmo sentir que usava o seu dom, o ser se manifestava: dava sem perceber que a isso chamavam amor. O dom era como falta de camisa do homem feliz: como o ser sentia muito pobre e não tinha o que dar, o ser se dava. Dava-se em silêncio, e dava o que juntara de si, assim como quem chama os outros para verem também.
Pouco a pouco o equívoco passou a rodear o ser: os outros olhavam o ser como uma estátua, como um retrato. Um retrato muito rico. Não compreenderam que para o ser, ter se reunido, fora do trabalho de despojamento e não de riqueza. Por equívoco, o ser era festejado. Mas sentir-se amado seria reconhecer-se a si mesmo no amor recebido, e aquele ser era amado como se fosse um outro ser. O ser verteu as lágrimas de uma estátua que de noite na praça chora sem se mexer. Nunca o escuro fora maior na praça. Até que de novo amanhecia e o ser renascia. O ritmo da terra era tão generoso que amanhecia. Mas de noite, quando chegava a noite, de novo escurecia. A praça de novo crescia em solidão. De medo, os que haviam elegido dormiam: medo porque pensavam que teriam de morar na solidão da praça? Não sabiam que a solidão da praça fora apenas o lugar de trabalho do ser. Mas que ele também se sentia só. O ser prepara-se a vida toda para ser apto ao lado da força da praça. É verdade que o ser, ao se sentir pronto assim como quem se banha com óleos e perfumes, notou que não lhe havia sobrado tempo para existir como os outros: era diferente sem querer. Alguma coisa falhara, porque, quando o ser se via no retrato que os outros haviam tirado, espantava-se humilde diante do que haviam feito dele. Haviam feito dele nada mais, nada menos, que um ser eleito. Isto é, haviam-no sitiado. Como desfazer o equívoco? Por simplificação e economia de tempo, haviam fotografado o ser numa única pose e agora não se referiam a ele, e sim à fotografia. Bastava abrir a gaveta para tirar de dentro o retrato. Qualquer um conseguia uma cópia que custava, aliás, barato.
Quando diziam para o ser: eu te amo, o ser se perturbava porque nem ao menos podia agradecer: e eu? por que não a mim também? por que só ao meu retrato? Mas não reclamava pois sabia que os outros não erravam por maldade. O ser às vezes, por uma questão de solidão, tentava imitar a fotografia, o que no entanto terminou por torná-la mais falsamente autêntica. Às vezes ele se confundia todo: não aprendia a copiar o retrato, e esquecera-se de como era sem o retrato. De modo que, como se diz do palhaço que sempre ri, o ser às vezes, por assim dizer, chorava sob a sua caiada pintura de bobo da corte.
Então ele tentou um trabalho subterrâneo de destruição da fotografia: fazia ou dizia coisas tão opostas à fotografia que esta se eriçava na gaveta. Sua esperança era tornar-se mais vivo que a fotografia. Mas o que aconteceu? Aconteceu que tudo o que o ser fazia só ia mesmo era retocar o retrato, enfeitá-lo.
E assim foi indo, até que, profundamente desiludido nas legítimas aspirações, o ser morria de solidão. Mas terminou saindo da estátua da praça, com grande esforço, levando várias quedas, aprendendo a passear sozinho. E, como se diz, nunca a terra lhe pareceu tão bela. Reconheceu que aquela era exatamente a terra para a qual se preparara: não errara, pois, o mapa do tesouro tinha as indicações certas. Passeando, o ser tocava em todas as coisas e, mesmo solitário, sorria. O ser aprendera a sorrir sozinho.

Fonte: Para não esquecer. Rocco, 1999. p. 98.

28 de mar. de 2015

O que faz andar a estrada? Mia Couto

Paul Klee, 1929

O que faz andar a estrada?
É o sonho. 
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos, 
para nos fazerem parentes do futuro.

10 de mar. de 2015

Canção para Sarojíni* :: Cecília Meireles


Passei por aqui.
Como já não podes ver o que estou vendo,
Vejo por ti.

Sedas vermelhas para Sarojíni !

Tudo quanto amavas, tudo que cantavas encontrei aqui:

Ouro, prata, véus, marfim, bogari.

Colares de flores para Sarojíni !

Lembrei-me de versos que um dia escreveste

E que um dia li.
Lembrei-me de ti.

Cantai, pregoeiros, para Sarojíni !

Tudo é teu aqui.

(Falo para aquele Rouxinol da Índia que não conheci.)

Incensos, queimai-vos para Sarojíni !

Ao mundo que habitas, tão fora daqui,

Vão minhas saudades, pássaros de ausência,
Sonhando por ti.

Brilhai, luas de ouro, para Sarojíni !


In:  Doze noturnos da Holanda e outros poemas. Nova Fronteira, 1986. 


* Sarojini Naidu ou Sarojini Chattopadhyaya (Hyderabad, 13 de fevereiro de 1879 - Lucknow, 2 de março de 1949), também conhecida pela alcunha Bharatiya Kokila (o rouxinol da Índia), foi uma criança prodígio, lutadora pela liberdade, e poeta. Naidu foi a primeira mulher indiana a se tornar o presidente do Congresso Nacional Indiano e a primeira mulher a tornar-se a governadora da província de Uttar Pradesh.

6 de mar. de 2015

Cantiga de acordar :: Edu Lobo e Chico Buarque

MordechaiArdon

Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés

Era como um trem
Que anda sem passar
Era um tempo sem
Lugar

Mas
Foi um sonho bom
De sonhar porque
Me sonhava com
Você
E então seu canto veio me acordar

Era uma ilusão
No interior
De uma outra ilusão
Maior

Mas
Você foi pro sol
Noite me envolveu
Num silêncio igual
Ao seu
E então seu canto veio me acordar

Tudo é uma ilusão
Os que estão aqui
Esses não estão
Em si
Do universo, o além
Faunos ou mortais
Vão restar mais nem
Sinais

Tudo o que se vê
É o sonho de algum
Pobre sonhador
Todas as estrelas
Todas as misérias
Todos os desejos
E a canção do meu amor
Tudo o que se viu
Tudo o que se foi

Última ilusão
Amanhece já
Vai-se abrir o chão
Quiçá
A ilusão se esvai
É uma cena só
E a cortina cai
Sem dó
Vai cessar o som
A sessão já foi
Despertar é bom
Mas dói

Pedras vão rolar
Choram serviçais
Vão se espatifar
Vitrais
Tomba o refletor
Ardem camarins
Cai no bastidor
A atriz
Descarrila o trem
O pilar cedeu
Vai morrer meu bem
E eu

Num jardim fugaz
De espirais sem fim
Eu corria atrás
De mim
O homem se distrai
Dorme em boa fé
Sua sombra sai
A pé

Mas
Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés


Edu Lobo/Chico Buarque - 2001
Para o musical Cambaio, de Adriana e João Falcão

29 de jan. de 2015

JANELA :: Czeslaw Milosz (1911-2004)

Gustave Klimt

Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem macieira, diáfana em meio à luz.
Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava uma grande macieira, carregada de fruto.
Passaram-se decerto muitos anos, mas não me lembro de nada do que aconteceu neste sonho.

     

20 de jan. de 2015

Parceria :: Flora Figueiredo (São Paulo, SP. – 1951 )

 Abraham Manievich

Ficamos assim: você joga as queixas no telhado,
eu ponho as manias de lado,
você lava a escadaria, eu rego o jardim.
Podemos varrer juntos as nódoas secas aderentes ao passado.
Se você se habilita, eu me disponho, num desafio à desdita.
Você acende a luz, eu desempeno o sonho,
enquanto você ensaia o passo, eu troco a fita.
Na mesa torta, a toalha colorida.
O resto é fácil: basta mandar flores ao futuro,
derrubar o muro e acreditar na vida.


9 de dez. de 2014

A Flor do Sonho :: Florbela Espanca



A Flor do Sonho alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…
Milagre… fantasia… ou talvez, sina…

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…

27 de nov. de 2014

Jorge Luis Borges: "El sueño"

Rene Magritte

Se o sonho fora (como dizem) uma
trégua, o límpido repouso da mente,
por que, se te despertam bruscamente,
sentes que te furtaram grã fortuna?

Por que é tão triste madrugar? A hora
nos despoja de um dom inconcebível,
tão íntimo que só é traduzível
numa modorra que a vigília doura

de sonhos, que bem podem ser reflexos
seccionados dos tesouros complexos
da sombra, de orbe atemporal sem nome

e que o dia em seus espelhos consome.
Quem poderá ser à noite no escuro
sonho, daquele lado do seu muro?

Tradução de Adriano Nunes
........................

Si el sueño fuera (como dicen) una
tregua, un puro reposo de la mente,
¿por qué, si te despiertan bruscamente,
sientes que te han robado una fortuna?

¿Por qué es tan triste madrugar? La hora
nos despoja de un don inconcebible,
tan íntimo que sólo es traducible
en un sopor que la vigilia dora

de sueños, que bien pueden ser reflejos
truncos de los tesoros de la sombra,
de un orbe intemporal que no se nombra

y que el día deforma en sus espejos.
¿Quién serás esta noche en el oscuro
sueño, del otro lado de su muro?


In: "Obra Poética". Buenos Aires: Enecé Editores, 2007, página 255.

22 de nov. de 2014

Disciplina :: Cesare Pavese

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

In:  Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca)
Tradução de Carlos Leite

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...