Em sua "Autobiografia" Hélio Pellegrino fala do incidente que motivou essa decisão ( pela área da medicina psiquiátrica) em 1943 :
"...Lembro-me de uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano. O doente, com tabes dorsal, ao centro do anfiteatro escolar, era um velhinho miúdo, ex-marinheiro, vestido com o uniforme da Santa Casa, onde estava internado. Suas pernas, hipotônicas, atrofiadas, pendiam da mesa de exame como molambos inertes. Jamais me sairá da memória o antigo lobo-do-mar, exilado das vastidões marítimas, feito coisa, diante de nós. Suas andanças pelo mundo, seus amores em cada porto ficavam reduzidos, em termo de anamnese, a um contágio venéreo ocorrido décadas atrás. O velhinho, contrafeito, engrolava o seu depoimento, fustigado pelos gritos de — "fala mais alto!" —com que buscávamos saciar nosso zelo científico. De repente, o desastre. Sem controle esfincteriano, o velho urinou-se na roupa, em pleno centro do mundo. Vejo-o, pequenino, curvado para a frente, tentando esconder com as mãos a umidade ultrajante. Seu pudor, entretanto, nada tinha a ver com a ciência neurológica. Esta lavrara um tento de gala, e o sintoma foi saudado com ruidosa alegria, como um goal decisivo na partida que ali se travava contra a sífilis nervosa.
O velho ficou esquecido como um atropelado na noite. A aula prosseguiu, brilhantemente ilustrada. Os reflexos e a sensibilidade cutânea do paciente foram pesquisado com maestria. Agulhas e martelos tocavam sua carne — esta carne revestida de infinita dignidade, que um dia ressurgirá na Hora do Juízo. Meu colega Elói Lima percebeu, juntamente comigo, o acontecimento espantoso. "O marinheiro está chorando" — me disse. Fomos três a chorar.
Entre lágrima e urina, nasceu-me o desejo de me dedicar à psiquiatria. O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como o grande tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar um caminho. ...".
Ainda nesse ano, viaja a São Paulo com Fernando Sabino, onde conhece Mário de Andrade. Começam uma correspondência que durou até a morte de Mário, em fevereiro de 1945.
fonte: http://www.releituras.com/helpellegri_bio.asp
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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