As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
In: Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Org. MORICONI, Ítalo. Rio de Janeiro: OBJETIVA, 2000, p.144-146.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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30 de set. de 2019
23 de out. de 2016
O Impossível Carinho :: Manuel Bandeira
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor_
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
20 de jul. de 2016
Pelas longas noites que passou desperta :: Robert Louis Stevenson
tendo tão pouco em retribuição
Pelo seu cafuné tão confortável
em que eu viajava pela imaginação
Por todos os livrinhos que você me leu
E por me confortar quando doeu
Por toda sua compaixão, todo o seu tédio,
Nos dias tristes e nos dias de bonança
Minha segunda mamãe, primeira esposa
O anjo da minha vida de criança
pequena e doente, cresci e revigorei
Toma, babá, esse livro para você!
Tomara, D´us, tomara que todos que leiam
possam encontrar uma querida babá ou enfermeira
e toda criança que gostar dessas rimas
aconchegada no sofá do lado da lareira
que possa ouvir como alguém que te diz
o que fez minha infância tão feliz!
A Child's Garden of Verses) Tradução: Rafael Leal
12 de out. de 2015
Minhas vidas passadas :: Luiz Ruffato
Sou daquelas pessoas que guardam lembranças bastante remotas. Algumas, tão distanciadas, que vejo-me incapaz de identificar com exatidão em que circunstância ocorreram – se é que ocorreram. Sim, porque a memória é uma narrativa concebida a partir de recordações evocadas por cheiros, imagens, barulhos, gostos ou sensações que impregnam a pele. Ao longo da nossa história vivenciamos tantas experiências, e tão diversas, que tornaria impossível acumulá-las como sucederam. Então, para não sobrecarregarmo-nos, penduramos esses acontecimentos em fios tênues que, aos poucos, rompem-se, convertendo-se em vestígios esparramados às nossas costas.
A realidade não deixa marcas no corpo, mas impressões fugidias na mente, pois a experiência é sempre subjetiva. Por exemplo: embora filhos da mesma mãe e do mesmo pai, minha irmã e eu descrevemos personagens diferentes como pai e mãe, porque nos relacionamos com eles de maneira diversa. Além disso, a memória atualiza-se: sucedidos que tiveram determinado significado num momento ganham outra relevância no momento seguinte, porque aquele que fui não é este que sou agora. Mais ou menos como quando nos deparamos com um bom livro, cuja apreensão transmuda-se a cada nova leitura. As palavras não se modificam, mas altera-se nosso entendimento do mundo na medida em que escoa o tempo.
Como conservamos dos episódios somente fragmentos, não hesitamos em incorporar lembranças alheias para compor nossas próprias recordações. Relatos de parentes sobre nossa infância, histórias entreouvidas de amigos a respeito de suas famílias, cenas assistidas em filmes, passagens de romances, nossa imaginação, tudo serve para preencher os hiatos e dar sentido à narrativa, que, partindo da invocação de um evento concreto situado no passado, desenvolve-se como fabulação. Se selecionamos os fatos que permanecem arquivados em chaves sensoriais, se o presente contamina o passado, se incorporamos ao nosso os relatos alheios, podemos concluir que a memória, assentada em reconstruções, não contabiliza reminiscências individuais, mas experiências subjetivas. O que fomos ontem existe apenas no que somos hoje – o passado é uma invenção projetada desde o futuro, eternizado no agora.
Apenas duas fotografias cristalizaram meu rosto na infância. O retrato mais antigo exibe um rosto triste ilustrando um corpo franzino revestido de roupas pobres: calção de tecido ordinário, blusa de flanela mal enjambrada, chinelos de dedo gastos. Tenho cinco anos, estou em frente a uma casa longe do meu bairro, ao lado de um casal que desconheço, imerso na tarde fria para sempre perdida. O outro retrato revela duas crianças, uma delas, enfiada na melhor roupa domingueira, exibe os mesmos olhos melancólicos, as mesmas pernas finas, a mesma desolação. Tenho seis anos, estou num estúdio, porque é aniversário do meu colega, Teodorico – como fazíamos anos na mesma data, a mãe dele, de pena, ajuntou-me ao flagrante.
Que passado reconstruo quando avoco o instante dessas fotografias? Estou lá, admito: reconheço-me, mas estranho-me, décadas me separam de mim mesmo. Aquela criança que existiu em mim subsiste no adulto apenas como hipótese. Cada período da minha vida engendrou um indivíduo distinto, que, embora alicerçado em bases comuns, edificou sua própria história. Para reconhecer-me no que fui, reconstituo-me com o manancial de que sou estruturado hoje. Por isso, cada recordação dos dias antigos é a lembrança de uma das minhas várias vidas passadas.
fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/13/opinion
A realidade não deixa marcas no corpo, mas impressões fugidias na mente, pois a experiência é sempre subjetiva. Por exemplo: embora filhos da mesma mãe e do mesmo pai, minha irmã e eu descrevemos personagens diferentes como pai e mãe, porque nos relacionamos com eles de maneira diversa. Além disso, a memória atualiza-se: sucedidos que tiveram determinado significado num momento ganham outra relevância no momento seguinte, porque aquele que fui não é este que sou agora. Mais ou menos como quando nos deparamos com um bom livro, cuja apreensão transmuda-se a cada nova leitura. As palavras não se modificam, mas altera-se nosso entendimento do mundo na medida em que escoa o tempo.
Como conservamos dos episódios somente fragmentos, não hesitamos em incorporar lembranças alheias para compor nossas próprias recordações. Relatos de parentes sobre nossa infância, histórias entreouvidas de amigos a respeito de suas famílias, cenas assistidas em filmes, passagens de romances, nossa imaginação, tudo serve para preencher os hiatos e dar sentido à narrativa, que, partindo da invocação de um evento concreto situado no passado, desenvolve-se como fabulação. Se selecionamos os fatos que permanecem arquivados em chaves sensoriais, se o presente contamina o passado, se incorporamos ao nosso os relatos alheios, podemos concluir que a memória, assentada em reconstruções, não contabiliza reminiscências individuais, mas experiências subjetivas. O que fomos ontem existe apenas no que somos hoje – o passado é uma invenção projetada desde o futuro, eternizado no agora.
Apenas duas fotografias cristalizaram meu rosto na infância. O retrato mais antigo exibe um rosto triste ilustrando um corpo franzino revestido de roupas pobres: calção de tecido ordinário, blusa de flanela mal enjambrada, chinelos de dedo gastos. Tenho cinco anos, estou em frente a uma casa longe do meu bairro, ao lado de um casal que desconheço, imerso na tarde fria para sempre perdida. O outro retrato revela duas crianças, uma delas, enfiada na melhor roupa domingueira, exibe os mesmos olhos melancólicos, as mesmas pernas finas, a mesma desolação. Tenho seis anos, estou num estúdio, porque é aniversário do meu colega, Teodorico – como fazíamos anos na mesma data, a mãe dele, de pena, ajuntou-me ao flagrante.
Que passado reconstruo quando avoco o instante dessas fotografias? Estou lá, admito: reconheço-me, mas estranho-me, décadas me separam de mim mesmo. Aquela criança que existiu em mim subsiste no adulto apenas como hipótese. Cada período da minha vida engendrou um indivíduo distinto, que, embora alicerçado em bases comuns, edificou sua própria história. Para reconhecer-me no que fui, reconstituo-me com o manancial de que sou estruturado hoje. Por isso, cada recordação dos dias antigos é a lembrança de uma das minhas várias vidas passadas.
fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/13/opinion
28 de mai. de 2015
Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda :: Fernando Pessoa
Miró
Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda,
Ó meu guizo de prata,
Meu colar de pérolas deixado em cima da cómoda,
Minha aliança de ouro em dedos já velhinhos e fieis,
Minha cantiga de raparigas ao poente,
Ó meu fumo de cigarro, tão inútil e tão necessário,
Minha Bíblia para as crianças brincarem,
Minha amante que eu queria trazer ao colo como uma filha...
Olha, tenho as mãos em febre...
Tenho a testa a escaldar, tenho os olhos muito estranhos...
Todos olham para o brilho dos meus olhos e espetam-se neles...
Eu tenho febre e tenho sede e lembro-me de ti por causa disso
Porque se eu te tivesse como te quereria ter
(Não sei se é de um modo físico, ou de um modo psíquico)
Eu não teria nem febre, nem sede, nem a testa a arder,
Nem os olhos secos, muito secos, sob a fronte...
Tu não sabes o que tem sido a minha vida!...
Tu não sabes que martírio tem sido o meu...
Se tu soubesses o que é amar as coisas simples e calmas
E não ter jeito para procurar senão as outras coisas!
Se tu soubesses porque é que quando eu estou na minha quinta de dia
Tenho saudades dela como se não estivesse lá...
Se tu soubesses o que eu sinto à noite, nos hotéis, pelas ruas,
Se tu soubesses! Mas eu próprio não sei o que é que sinto...
Minha lantejoula, minha casa de bonecas,
Ó meus brinquedos da minha infância atados com cordéis!
Ó meu regimento que passa com a banda à frente,
Minha noite no circo, nos cavalinhos, a rir dos palhaços...
Ó minha (...)
s.d.
Poemas de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Edição crítica de Cleonice Berardinelli.) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990. - 325.
20 de abr. de 2015
Toda saudade é uma espécie de velhice :: João Guimarães Rosa
Joan Miro, 1925
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”Grande Sertão: Veredas.
2 de mar. de 2015
Infância :: Helena Kolody
Anita Malfatti
Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!
Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.
A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...
O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.
Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.
Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.
Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!
No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)
Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...
Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras!
in A Sombra no Rio, 1951)
21 de fev. de 2015
Minha cidade está toda cor-de-rosa :: Aldo Bonadei
Aldo Bonadei
Não vás ainda o instante já foi
Irás de vermelho
O tempo irá contigo
Depois será outro tempo.
A cidade está toda cor-de-rosa
Cor da infância longínqua
Cidade imensa
Casa sobre casa
Sempre a mesma cor
Gás néon brinca
Sobre o azul
Inutilmente.
22 de dez. de 2014
A LEITORA PERFEITA :: LUIS FILIPE CASTRO MENDES
e ouve só as minhas palavras sem sentido,
o balbuciar que eu solto antes da voz,
tudo o que há tanto tempo trago preso na garganta.
nem o ritmo da cantilena aprendida na infância,
nem a música da poesia:
ouve apenas o balbuciar, o sopro antes da voz,
quase um estertor, mas a dizer agora
que estamos vivos.
In LENDAS DA ÍNDIA. D. Quixote, 2011
30 de out. de 2014
Memórias das infâncias :: Adília Lopes
Gostávamos muito de doce de framboesa
E deram-nos um prato com mais doce de framboesa
Do que era costume
Mas
A nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
Para nosso bem
Porque estávamos doentes
Esconderam colheres do remédio
Que sabia mal
O doce de framboesa não sabia à mesma coisa
E tinha fiapos brancos
Isso aconteceu-nos uma vez e chegou
Nunca mais demos pulos por ir haver
Doce de framboesa à sobremesa
Nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
Como o remédio da nossa infância sabia mal!
Como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
Ao descobrir a mistura
Do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
Depois ouvimos falar da entropia
Aprendemos que não se separa de graça
O doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
E os livros são como as infâncias
Que são como as pombinhas da Catrina
Uma é minha
Outra é tua
Outra é de outra pessoa
pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, (Lisboa, 20 de Abril de 1960)
23 de jun. de 2014
Cumprimento :: Dorothy Parker
Para tal minha mãe me aqueceu
e me chamava para casa antes do breu
e induzia a noite da infância a ficar quieta
e me dava fortes cereais na minha dieta
e às oito em ponto me fazia deitar
e prendia meus cabelos, sem me permitir engordar
e vigiava meu sentar, minha postura
para eu me tornar uma mulher madura
e ouvir um assobio e perder a razão
e fazer caquinhos do meu coração.
21 de nov. de 2013
Elena Poniatowska, Prêmio Cervantes 2013
Eugene de Blaas
Você sabe, desde a minha infância estive sentada assim a
esperar, sempre fui dócil, porque esperava você.
Sei que todas as mulheres aguardam.
Aguardam a vida futura, todas essas imagens forjadas na
solidão, todo esse bosque que caminha na direção delas;
toda essa imensa promessa que é o homem; uma romã que de
repente se abre e mostra seus grãos vermelhos, brilhantes;
uma romã como uma boca generosa de mil gomos.
Mais tarde, essas horas vividas na imaginação, feito horas
reais, terão que receber peso e tamanho e aspereza.
Estamos todos - oh meu amor - tão cheios de retratos
interiores, tão cheio de paisagens não vividas.
Sabes, desde mi
infancia me he sentado así a esperar, siempre fui dócil, porque te esperaba. Sé
que todas las mujeres aguardan. Aguardan la vida futura, todas esas imágenes
forjadas en la soledad, todo ese bosque que camina hacia ellas; toda esa
inmensa promesa que es el hombre; una granada que de pronto se abre y muestra
sus granos rojos, lustrosos; una granada como una boca pulposa de mil gajos.
Más tarde esas horas vividas en la imaginación, hechas horas reales, tendrán
que cobrar peso y tamaño y crudeza. Todos estamos - oh mi amor- tan llenos de
retratos interiores, tan llenos de paisajes no vividos.
In: Poniatowska, Elena. De noche vienes. Biblioteca Era. México, 1996.
In: Poniatowska, Elena. De noche vienes. Biblioteca Era. México, 1996.
20 de jul. de 2013
A casa onde nasci de Paulo Freire
Paulo Freire in Revista do Brasil, ano 2, nº 4, 1985. p.18.
3 de mai. de 2013
Retrato do artista quando jovem (trecho) - James Joyce
Pedro Figari - La vida
Onde estava, agora, a sua infância? Onde estava a alma que recuara suspensa do seu destino, para avaliar sozinha a vergonha de suas feridas e para em sua morada de sordidez e de subterfúgio governar por entre velhas mortalhas e grinaldas que murchavam ao menor contato? Ou onde estava ele?
Ele estava longe de tudo e de todos, sozinho. Ele estava desligado de tudo, feliz, rente ao coração selvagem da vida. Estava sozinho, e era jovem, cheio de vontade, e tinha um coração selvagem; estava sozinho no meio dum ermo de ar bravio, entre águas salobras, entre a colheita marítima de conchas, entre emaranhados e redemoinhos, entre claridades embaçadas de cinzento, entre figuras de crianças, e de raparigas vestidas de alegria, e de luz, entre vozes infantis e joviais que enchiam o ar.
19 de abr. de 2013
A despropósito de Adélia Prado
Olhou para o teto, a telha parecia um quadrado de doce.
Ah! - falou sem se dar conta que descobria, durando desde
a infância, aquela hora do dia, mais um galo cantando,
um corte de trator, as três camadas de terra,
a ocre, a marrom, a arroxeada. Um pasto,
não tinha certeza se uma vaca
e o sarilho da cisterna desembestado, a lata
batendo no fundo com estrondo.
Quando insistiram, vem jantar, que esfria,
ele foi e disse antes de comer:
`Qualidade de telha é essas de antigamente`.
11 de mar. de 2013
Às vezes, em sonho triste de Fernando Pessoa
Vieira da Silva
Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.
Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.
O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.
Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
21-11-1909
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 15.
3 de mar. de 2013
ADIAMENTO de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
14-4-1928
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.
14 de dez. de 2012
A LUÍS MAURÍCIO, INFANTE de Carlos Drummond de Andrade
Monet
Acorda, Luís Mauricio. Vou te mostrar o mundo,
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo.
Despertando, Luís Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho?
Que seria de ti, Luís Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário
e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Mauricio, que sejam novos e comovidos.
E como há tempo para viver, Luís Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a "Justicia del Trabajo", onde a imaginosa linha da hera
tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe.
Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luís Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício.
E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.
Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,
conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado,
de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos.
O tempo que fazer dele? Como adivinhar, Luís Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?
Hás de aprender o tempo, Luís Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência,
que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo.
Aprenderás muitas leis, Luís Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,
e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.
Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas
são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas
que alguém um dia cantará, Luís Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto
ou de riso. E te acompanhará, Luís Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas,
enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura
essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado
articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas,
imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela;
o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério;
o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;
o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência,
que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.
É preciso criar de novo, Luís Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos,
de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos.
Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado.
Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar
que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais.
É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas
do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os "chicos" e as "palomas" confraternizam na "Plaza de Mayo".
Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luís Mauricio.
29 de nov. de 2012
A poesia foi para mim um divã - Carlos Drummond de Andrade
De fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou tonificante, procurando, sem que eu percebesse, clarear os aspectos sombrios da minha mente.
Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas. Eram questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de casamentos de tios com sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se acumulando na mente, criando problemas de adaptação ao meio, de dúvida, de perplexidade.
Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi para mim um divã.
Publicado originalmente em: Folha de S. Paulo, caderno Ilustríssima, em 08 de julho de 2012.
Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas. Eram questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de casamentos de tios com sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se acumulando na mente, criando problemas de adaptação ao meio, de dúvida, de perplexidade.
Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi para mim um divã.
Publicado originalmente em: Folha de S. Paulo, caderno Ilustríssima, em 08 de julho de 2012.
9 de ago. de 2012
Infância de Carlos Drummond de Andrade
Drummond aos 2 anos
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
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