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5 de set. de 2022

Eucanaã Ferraz, "Acontecido"


Mary Jane Glauber

Como quem se banhasse
no mesmo rio
de águas repetidas,
outra vez era setembro
e o amor tão novo.
Iguais, teu hálito mascavo
e minha mão inquieta.
Novamente o quarto,
a praça vista da janela,
teu peito.
Depois eu era só – vê -
sob a chuva miúda daquele dia.

21 de set. de 2020

De amar mucho tienes a palabra de Dulce María Loynaz

Salvador Dali

De amar mucho tienes 
a palabra que persuade, 
la mirada que vence 
y que turba...

De amar mucho dejas amor
en torno tuyo, el que pasa 
cerca y se huele el perfume
en el pecho, viene a creer
que tiene la rosa dentro...


fonte: Poemas sin nombre. Letras Cubanas, 1993.

http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/omara-portuondo-e-maria-bethania/poema-lxiv--palabras--palavras/2349610

14 de set. de 2020

Esses que continuam a amar :: Fatos Arapi (poeta albanes)


Esses que não têm que comer,
Quando sonham com comida
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que não têm fogo,
Quando sonham com o fogo
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Os insones deste mundo
Com os olhos abertos como a noite
No abismo das suas noites
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que já morreram
E continuam a amar -
Deixem-nos pensar em mim e em ti.

(Versão  a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry; organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 178).

20 de jul. de 2020

Poema Concreto de Thiago de Mello


Pedro Ruiz

O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso, 
perdida nos teus escuros, 
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes, 
mas que é tua vida, 
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens. 

13 de jul. de 2020

Al-Mu'tamid, "Só eu sei ..."




Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.

Al-Mutamid Alã-l-lãh ibn 'Abbãd Abu-l-Qasin Muhammad nasceu em Beja (Portugal) em 1040 e morreu em Agmat (Marrocos) em  1095.
Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".

22 de jun. de 2020

Somente para seus olhos de Andrea Dutra


Antonio Canova, Cupid and Psyche (detalhe), 1786-93 

eu guardo o nosso segredo como se guarda, escondida no fundo da gaveta, uma jóia dentro de uma caixa forrada de veludo, enrolada no lenço de seda. ou como se perde, entre as folhas de um livro, uma folha seca que a gente pegou no chão daquele dia especial de outono. um dia a gente abre o livro e dá de cara com a cena. guardo os instantâneos da nossa vida na retina, milhares de quadros por segundo. não tiramos nenhuma foto juntos, mesmo qdo o sol listrava de cor de rosa o céu azul do arpoador. não postamos nossos pés sujos de areia no instragram. a gente anda na rua sem dar as mãos, mas trocamos olhares. não vamos publicar nenhuma das nossas felicidades, não vamos postar nada. não temos amigos em comum, não moramos na mesma cidade. nós moramos na nuvem. agora, falamos menos. nos olhamos mais. sorrimos, e ficamos calados, lado a lado. a paz reina. qdo nos vemos vem lua vai sol vem noite vai dia. somos completamente.

12 de jun. de 2020

Dia dos Namorados


Em Paris, no Dia dos Namorados, os enamorados colocam um cadeado com seus nomes gravados na Pont des Arts, e jogam a chave no Sena, como um símbolo da força do seu amor eterno. 

27 de jul. de 2018

Espera :: Nelly Rocha Galassi


Matisse - A tristeza do rei

Passa uma caravana
de acontecimentos
pelo deserto
de tua vida.

Há de haver um oásis
verdejante em teus sentidos.

Quando eu estiver
junto à ti acontecendo
que seja à sombra
das palmeiras

12 de mai. de 2018

Sonho materno de Fabrício Carpinejar



O sonho de toda mãe mais velha é segurar a mão de seu filho adulto na rua. Que seu rebento partilhe um pouco de sua pele durante cem metros.

Casado, separado, divorciado, tanto faz o estado civil, se está com cavanhaque ou penacho, se é emo ou cowboy, ela tenta reaver os preciosos momentos da infância em que o buscava na escola e não havia vergonha para entrelaçar as palmas em público.

A adolescência criou uma barreira invisível e intransponível que não permite se aproximar do filho com naturalidade. Não é fácil puxar seus cotovelos para perto. Abraço acontece em data comemorativa, e mão é somente em caso de doença.
Desde que ele arrumou mulheres e passou a voltar tarde, ele não dá mais a mão fora de casa. É um tabu, um medo de ser contagiado pela emoção, um atentado ao pudor.
Seu menino crescido pede distância nas caminhadas. No máximo, oferece a argola dos braços, como se fosse uma muleta amparando a lentidão dos passos.
O mais alto desejo é receber os dedos do filho como um anel de brilhante, que os vizinhos reconheçam os cuidados de uma vida dedicada à maternidade, que ela sirva de exemplo às próximas gerações, provoque ciúme nas escadarias das igrejas. É uma recompensa social, é retirar finalmente o Fundo de Garantia doméstico.
E não vale em faixa de segurança, onde a mãe se sentirá inválida; a aspiração depende do espaço largo das calçadas e da curiosidade indiscreta dos passantes.
Toda mãe madura tem esse sonho, que é o pesadelo do filho.
Já observei a mãe Maria Elisa de 70 anos me enganchar com suas unhas pintadas de rosa antigo. São três décadas insistindo, teimando, chega a irritar sua obsessão, que mania!, ela sabe que não gosto. Aproveita alguma distração, um riso à toa e espicha o braço. Talvez cogite que é o momento, que finalmente me abrirei de novo ao convívio. Eu recuso, fecho metade do punho, digo que esqueci o celular em casa e preciso voltar. Simulo desinteresse e que não prestei atenção. Entre eu e ela, fingimos que nunca existiu a atitude, apesar de sempre existir.
Andar de mãos dadas com ela é aceitar a pecha de filhinho da mamãe, é acolher o estigma eternamente. Não serei levado a sério. O que minha namorada vai pensar?
Não posso arriscar, é o equivalente a trocar a gravata pelo babador. Perderei a reputação no banco e o respeito das lotéricas. Alguns dirão que sofro de Complexo de Édipo, outros a chamarão de sem-vergonha abusando de jovenzinhos.
Acho que conseguiria adiar a crise diplomática para mais alguns anos, mas o maldito irmão Miguel quebrou o protocolo. Traiu a família, o acordo silencioso, o inventário dos gestos.
Além de levá-la ao cinema, percorreu o shopping inteiro apertando sua mão, inclusive na frente das lojas do Grêmio e do Inter. Eu me tornei insensível, extraviei sua herança, com nenhuma chance de retomar a posição de dileto. Vou procurar o perdão beijando meu pai no calçadão da Rua da Praia.
fonte: 12.07.2010 Jornal ZERO HORA

30 de jan. de 2018

"Preciso" :: Eucanaã Ferraz

Childe Hassam 
 
Meu esforço para que os dias
tenham vinte e quatro horas, ossos,
o sol, a noite, para que ruas, praças
e túneis estejam nos seus lugares.

Meu esforço para que a voz se mova
na fibra exata, para que a cidade,
cada dedo de sua álgebra, não desabe,
para que as fábulas, risos e palavras

estejam no ponto certo, assim como
as pedras, prédios e montanhas
que mantenho quietos a custo.
Amor a quanto obriga.

Meu esforço, faina de todo dia,
para que disso tudo ele nada perceba.
E ele nada percebe. Chove,
e só eu sei.

20 de nov. de 2017

Elas podem ser ensinadas a amar :: Nelson Mandela

Ismael Nery

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.

2 de nov. de 2017

O LADO FATAL :: Lya Luft


Amado meu, que tanto ensinaste 
de mim a mim mesma, e do mundo 
a quem o conhecia pouco: 
quando se desfizer escura a noite desta perda, 
quero enxergar pelos teus olhos, 
amar através do teu amor 
as coisas que me restaram. 
Amado meu, vivo em mim para sempre, 
apesar da ruga a mais 
e do olhar mais triste, 
devo-te isto: 
voltar a amar a vida 
como agora amas, inteiramente, 
a tua morte. 




10 de out. de 2016

Desenho de Cecília Meireles



Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.

Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosas!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes!  - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.


                                   

7 de out. de 2016

Porque Era Ela, Porque Era Eu:: Chico Buarque ( 2006 )

Chagall
Eu não sabia explicar nós dois
Ela mais eu, por que eu e ela
Não conhecia poemas
Nem muitas palavras belas
Mas ela foi me levando
Pela mão

Íamos tontos os dois assim ao léu
Ríamos, chorávamos sem razão
Hoje, lembrando-me dela
Me vendo nos olhos dela
Sei que o que tinha de ser se deu
Porque era ela
Porque era eu


Da Amizade - Michel de Montaigne

30 de set. de 2016

Dez coisas que fazem a vida valer a pena de Rubem Braga



Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.


Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.


Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.

Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.


Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.


Viajar, partir…


Voltar.

Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio

Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.


fonte: As Boas Coisas da Vida. Record, 1988,

26 de set. de 2016

Amor à primeira vista de Wislawa Szymborska



Os dois estão convencidos
de que foi um sentimento súbito que os juntou.
É bela uma certeza como essa,
mas é mais bela a incerteza.

Acham que por não se terem conhecido antes
nunca houve nada entre eles.
E o que diriam as ruas, escadas, corredores,
onde há muito podiam se cruzar?

Queria perguntar-lhes
se não lembram –
na porta giratória talvez
um dia cara a cara?
em meio à multidão um “com licença”?
no telefone a voz “engano”?
– mas conheço sua resposta.
Não, não se lembram.

Ficariam surpreendidos de saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Não preparado ainda
a transformar-se para eles num destino,
aproximava-os e os afastava,
cortava-lhes o caminho
e, abafando a gargalhada,
saltava para o lado.

Houve sinais, signos,
só que ilegíveis.
Talvez há três anos atrás
ou na terça-feira passada
certa folha voou
de um ombro para o outro?

Houve algo perdido e recolhido.
Quem sabe, uma bola
já no bosque da infância.

Houve maçanetas e campainhas,
em que antes
já o toque se punha no toque.
As malas lado a lado no depósito de bagagem.
Talvez, numa certa noite, o mesmo sonho
apagado imediatamente depois de acordar.

Pois cada princípio
é apenas uma continuação,
e o livro de eventos
sempre aberto no meio.
Wisława Szymborska (Kórnik, 2 de Julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012)

23 de ago. de 2016

O remo sou eu mesmo... Mia Couto


Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demónios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.
      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.
      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.
      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvilho estava um rio parado.
      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.
      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.
      - A ponte entre eu e você, meu filho.
      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.
      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?
      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.
      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais-velho dizia.
      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.
      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.
      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direcção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-mos.
      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...
fonte: A Chuva Pasmada. Editorial Caminho, 2004.

16 de ago. de 2016

13 de jul. de 2016

Amar é Sempre Descobrir o Outro com a sua Diferença Inesperada - Contardo Calligaris


Receita do amor que dura: amar o outro não apesar de sua diferença, mas por ele ser diferente.
Em geral , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as histórias de amor acabam quando os amantes se juntam (é o modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo intransponível (é o modelo Romeu e Julieta). No modelo Cinderela, o narrador nos deixa sonhando com um “viveram felizes para sempre”, que seria a “óbvia” conseqüência da paixão. No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos de família?
Talvez as histórias de amor que acabam mal nos fascinem porque, nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora gloriosa da dificuldade, tragicômica e inglória, da vida conjugal. O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de amor, mas para farsa ou vaudeville -às vezes, para conto de terror, à la “Dormindo com o Inimigo”.
Durante décadas, Calvin Trillin * escreveu uma narrativa de sua vida de casal, na revista “New Yorker” e em alguns livros (por exemplo, “Travels with Alice”, viajando com Alice, de 1989, e “Alice, Let’s Eat”, Alice, vamos para a mesa, de 1978). Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida.
À primeira vista, isso confirma a regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal: ele nos divertia celebrando a alegria do casamento. Qual era seu segredo? Pois bem, Alice, com quem Trillin se casou em 1965, morreu em 2001.
Trillin escreveu “Sobre Alice”, que acaba de ser publicado pela Globo. Esse pequeno e tocante texto de despedida desvenda o segredo de um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos. O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência.
Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de “Sobre Alice”: “Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia”. A graça está no fato de que a “propensão” de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.
Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel. Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice.
Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal. Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula: Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...