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22 de jun. de 2020

Somente para seus olhos de Andrea Dutra


Antonio Canova, Cupid and Psyche (detalhe), 1786-93 

eu guardo o nosso segredo como se guarda, escondida no fundo da gaveta, uma jóia dentro de uma caixa forrada de veludo, enrolada no lenço de seda. ou como se perde, entre as folhas de um livro, uma folha seca que a gente pegou no chão daquele dia especial de outono. um dia a gente abre o livro e dá de cara com a cena. guardo os instantâneos da nossa vida na retina, milhares de quadros por segundo. não tiramos nenhuma foto juntos, mesmo qdo o sol listrava de cor de rosa o céu azul do arpoador. não postamos nossos pés sujos de areia no instragram. a gente anda na rua sem dar as mãos, mas trocamos olhares. não vamos publicar nenhuma das nossas felicidades, não vamos postar nada. não temos amigos em comum, não moramos na mesma cidade. nós moramos na nuvem. agora, falamos menos. nos olhamos mais. sorrimos, e ficamos calados, lado a lado. a paz reina. qdo nos vemos vem lua vai sol vem noite vai dia. somos completamente.

19 de mai. de 2015

O Gato :: Charles Baudelaire (1821-1867)

Picasso
É no meu cérebro que se passeia,
Como no seu apartamento,
Um gato doce e atraente.
Mal o consigo ouvir, se mia,

Porque o seu timbre é tão discreto;
Mas a voz, calma ou iracunda,
É sempre rica e bem profunda.
É o seu encanto e o seu segredo.

A voz, que goteja e se infiltra
No meu fundo mais tenebroso,
Enche-me, qual verso copioso,
E satisfaz-me como um filtro.

Adormeço os males cruéis,
Ela contém todos os extâses;
E pra dizer as maiores frases
Não necessita de palavras.

Não, não exista arco que morda
O meu peito, raro instrumento,
E faça majestosamente
Cantar essa vibrante corda,

Como a tua voz, ó misterioso
Gato seráfico, tão estranho,
No qual tudo é, como num anjo,
Tão subtil como harmonioso!

Tradução: Fernando Pinto do Amaral
As Flores do Mal. Editora Assírio e Alvim. 1992

26 de jul. de 2014

Os primeiros momentos :: CORAL RUMBLE

Anastasija Kraineva
Amo os primeiros momentos da manhã
aqueles momentos que ainda ninguém usou
tão limpos
que deves lavar os pés antes de os habitares
aqueles momentos que cheiram como pétalas de rosa e erva cortada
e encharcam a tua roupa com orvalho

Irás chocar com segredos
descobrir milagres cobertos habitualmente pelo fumo dos autocarros
escutarás puros ecos sussurros e corridas precipitadas

Amo os primeiros momentos da manhã
quando o sol tem um só olho aberto
e o dia é como uma camisa lavada
sem vincos e pronta a usar
aqueles momentos que prendem a tua atenção
por serem tão sossegados


7 de nov. de 2013

A CASA ARRENDADA de JOAQUIM PESSOA


Põe rendas na casa
da casa de renda
com ternuras de asa,
perfumes de lenda.

Põe lendas antigas
em jarras modernas.
Sua boca abriga
palavras eternas.

Põe fios de lume
de leve no peito.
Lençóis de ciúme
aquecem-lhe o leito.

Esquecem-lhe os medos
mas lembram-lhe as mágoas.
Medeiam segredos
em serenas águas.

Quando o pensamento
lhe abre as janelas
as éguas do vento
entram-lhe por elas,

por alas de rosas
de rendas cuidadas
como mariposas
azuis, delicadas.

Delícias, delírios
de linho, esvoaçam.
São lentos martírios
que as mãos entrelaçam.

Se o dia é um lago,
um mês ou um ano,
por dentro é afago,
por fora é engano.

E fiam sentadas
filhas de princesa,
bordam almofadas,
toalhas de mesa.

À noite no leito
tem corpo de abraços
e a rosa do peito
desfaz-se em pedaços.

Mas nada lhe importa
e, com mãos de Fada,
põe trancas na porta

da casa arrendada.

11 de set. de 2012

Belo, belo de Manuel Bandeira


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.

Não quero combater,
Não quero ser soldado.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

15 de jan. de 2010

PRECE DE MINEIRO NO RIO



Conserva em mim ao menos a metade
do que fui de nascença e a vida esgarça:
não quero ser um móvel num imóvel,
quero firme e discreto o meu amor,
meu gesto seja sempre natural,
mesmo brusco ou pesado, e só me punja
a saudade da pátria imaginária.
Essa mesma, não muito. Balançando
entre o real e o irreal, quero viver
como é de tua essência e nos segredas,
capaz de dedicar-me em corpo e alma,
sem apego servil ainda o mais brando.

Carlos Drummond de Andrade

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...