Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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29 de mar. de 2017
Futuro :: Noemi Jaffe
o celular me avisa que não tenho nenhum lembrete futuro. mas gostaria de tê-los. gostaria que o futuro me mandasse lembretes sobre como ele terá sido passado. que o futuro sentisse saudades de não ter acontecido ainda. que ele dissesse: não venha agora não, que por aqui as coisas estão complicadas. ou então o contrário: você não imagina como está bom por aqui, aguardo sua chegada ansioso. que ele indicasse o caminho mais longo para eu seguir até chegar nele. ou então que ele se tocasse da sua inexistência e entendesse que, quando ele chegar, ele não será nada. que ele saísse do aviso do celular e ficasse sossegado lá, sem me encher o saco.
26 de jul. de 2014
Os primeiros momentos :: CORAL RUMBLE
Anastasija Kraineva
Amo os primeiros momentos da manhã
aqueles momentos que ainda ninguém usou
tão limpos
que deves lavar os pés antes de os habitares
aqueles momentos que cheiram como pétalas de rosa e erva cortada
e encharcam a tua roupa com orvalho
Irás chocar com segredos
descobrir milagres cobertos habitualmente pelo fumo dos autocarros
escutarás puros ecos sussurros e corridas precipitadas
Amo os primeiros momentos da manhã
quando o sol tem um só olho aberto
e o dia é como uma camisa lavada
sem vincos e pronta a usar
aqueles momentos que prendem a tua atenção
por serem tão sossegados
7 de mar. de 2013
O Dia Deu em Chuvoso - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Chuva de Oswaldo Goeldi
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...
O dia deu em chuvoso.
Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa
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