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29 de out. de 2019

As árvores e os livros :: Jorge Sousa Braga


As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras. 
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras*. 


in Herbário, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999
*sardineira: gerânios 

27 de mai. de 2015

Deus fale conosco :: Goethe


 Henri Matisse

Simplesmente não consigo compreender como é que se pode acreditar que Deus fale conosco através de livros e de histórias. Se o mundo não te revela imediatamente de que modo se relaciona contigo, se teu coração não te diz o que deves a ti próprio e aos outros, jamais o farão os livros, que na verdade só servem para dar nomes aos nossos erros. 

De: GOETHE, J.W. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Buch VII. München: DTV, 1988.

3 de abr. de 2015

ESTE ES EL PRÓLOGO :: Federico García Lorca (Fuente Vaqueros, 5 de Junho de 1898 — Granada, 19 de Agosto de 1936)

Este é o Prólogo
Deixaria neste livro
toda minha alma.
Este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.

Que compaixão dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam!

Que tristeza tão funda
é mirar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta!

Ver passar os espectros
de vidas que se apagam,
ver o homem despido
em Pégaso sem asas.

Ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se miram e se abraçam.

Um livro de poemas
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,

e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes mete nos peitos
— entranháveis distâncias. —

O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchadas
de chorar o que ama.

O poeta é o médium
da Natureza-mãe
que explica sua grandeza
por meio das palavras.

O poeta compreende
todo o incompreensível,
e as coisas que se odeiam,
ele, amigas as chama.

Sabe ele que as veredas
são todas impossíveis
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Nos livros seus de versos,
entre rosas de sangue,
vão passando as tristonhas
e eternas caravanas,

que fizeram ao poeta
quando chora nas tardes,
rodeado e cingido
por seus próprios fantasmas.

Poesia, amargura,
mel celeste que mana
de um favo invisível
que as almas fabricam.

Poesia, o impossível
feito possível. Harpa
que tem em vez de cordas
chamas e corações.

Poesia é a vida
que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva
nossa barca sem rumo.

Livros doces de versos
são os astros que passam
pelo silêncio mudo
para o reino do Nada,
escrevendo no céu
as estrofes de prata.

Oh! que penas tão fundas
e nunca aliviadas,
as vozes dolorosas
que os poetas cantam!

Deixaria no livro
neste toda a minha alma...

Federico García Lorca.  in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes

...............
Dejaría en este libro
toda mi alma.
Este libro que ha visto
conmigo los paisajes
y vivido horas santas.

¡Qué pena de los libros
que nos llenan las manos
de rosas y de estrellas
y lentamente pasan!

¡Qué tristeza tan honda
es mirar los retablos
de dolores y penas
que un corazón levanta!

Ver pasar los espectros
de vidas que se borran,
ver al hombre desnudo
en Pegaso sin alas,

ver la vida y la muerte,
la síntesis del mundo,
que en espacios profundos
se miran y se abrazan.

Un libro de poesías
es el otoño muerto:
los versos son las hojas
negras en tierras blancas,

y la voz que los lee
es el soplo del viento
que les hunde en los pechos,
entrañables distancias.

El poeta es un árbol
con frutos de tristeza
y con hojas marchitas
de llorar lo que ama.

El poeta es el médium
de la Naturaleza
que explica su grandeza
por medio de palabras.

El poeta comprende
todo lo incomprensible,
y a cosas que se odian,
él, amigas las llama.

Sabe que los senderos
son todos imposibles,
y por eso de noche
va por ellos en calma.

En los libros de versos,
entre rosas de sangre,
van pasando las tristes
y eternas caravanas

que hicieron al poeta
cuando llora en las tardes,
rodeado y ceñido
por sus propios fantasmas.

Poesía es amargura,
miel celeste que mana
de un panal invisible
que fabrican las almas.

Poesía es lo imposible
hecho posible. Arpa
que tiene en vez de cuerdas
corazones y llamas.

Poesía es la vida
que cruzamos con ansia
esperando al que lleva
sin rumbo nuestra barca.

Libros dulces de versos
son los astros que pasan
por el silencio mudo
al reino de la Nada,
escribiendo en el cielo
sus estrofas de plata.

¡Oh, qué penas tan hondas
y nunca remediadas,
las voces dolorosas
que los poetas cantan!

Dejaría en el libro
este toda mi alma...



3 de jan. de 2015

CANTO NONO :: TONINO GUERRA


Van Gogh

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

In: O Mel. Tradução de Mário Rui de Oliveira. Assírio e Alvim, 2004

13 de set. de 2014

Livros :: Caetano Veloso

Friedensreich Hundertwasser, 1971

Tropeçavas nos astros desastrada 
Quase não tínhamos livros em casa 
E a cidade não tinha livraria 
Mas os livros que em nossa vida entraram 
São como a radiação de um corpo negro 
Apontando pra a expansão do Universo 
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso 
(E, sem dúvida, sobretudo o verso) 
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada 
Sem saber que a ventura e a desventura 
Dessa estrada que vai do nada ao nada 
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes 
Mas podemos amá-los do amor táctil 
Que votamos aos maços de cigarro 
Domá-los, cultivá-los em aquários, 
Em estantes, gaiolas, em fogueiras 
Ou lançá-los pra fora das janelas 
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) 
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los 
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas 
E de mais confusão as prateleiras. 
Tropeçavas nos astros desastrada 
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.

26 de abr. de 2013

Las cosas - Jorge Luís Borges

El bastón, las monedas, el llavero,
la dócil cerradura, las tardías
notas que no leerán los pocos días
que me quedan, los naipes y el tablero,
un libro y en sus páginas la ajada
violeta, monumento de una tarde
sin duda inolvidable y ya olvidada,
el rojo espejo occidental en que arde
una ilusoria aurora. Cuántas cosas,
limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
nos sirven como tácitos esclavos,
ciegas y extrañamente sigilosas
durarán más allá de nuestro olvido;
no sabrán nunca que nos hemos ido.
....................................................................
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.

15 de abr. de 2013

O mundo que gostaria de morar de Clarice Lispector

Ann Gorbett
"Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria, que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! Só depois vim a saber que a autora era considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield."

14 de nov. de 2012

Biblioteconomia de Mario de Andrade



O contato com os livros e manuscritos dessas idades que irreverentemente costumamos chamar de “passado”, será que nos deixa o ser mais antigo?... Parece. Positivamente não é a mesma coisa a gente ler Matias Aires* numa edição primeira ou numa reimpressão contemporânea. A transposição moderna conterá sempre a mesma substância, e mesmo nas raríssimas edições honestas, a substância estará enriquecida de comentários, correções, esclarecimentos. Mas o importante é que não são apenas os dados da verdade que um livro pode nos fornecer. Quem julgar assim, sabe ler pelo meio.

O livro não é apenas uma dádiva à compreensão; é, deve ser principalmente, um fenômeno de cultura. Quem lê indiferentemente um escrito numa edição do tempo ou noutra moderna, numa edição mal impressa ou noutra tipograficamente perfeita, num bom como num mau papel, esse é um egoísta, cortado em meio em sua humanidade. Lê porquê sabe ler, e apenas. O livro lido apenas para se saber o teor do escrito é sempre singularmente subversivo da humanidade que trazemos em nós. O fenômeno mais característico desse individualismo errado, a gente encontra nos estudantes que, na infinita maioria, são pervertidos pelos seus livros de estudo. Não que todos os livros escolares sejam ruins, os rapazes é que ainda não aprenderam a ler. Lêem para saber a verdade que está nos livros, e apenas. O resultado são essas almas imperialistas, tão freqüentes nos ginásios, vivendo em decretos desamorosos, incapazes de distinguir, comendo, dormindo, respirando afirmações. O estudante pernóstico, corrigindo os erros do pai!

Nas civilizações contemporâneas mais energicamente respeitosas do homem, as universidades, os livreiros, se esforçam para apresentar o livro, não apenas como um repositório de verdades, mas como um fenômeno duma totalidade muito mais fecunda que isso. Pela boniteza da impressão, pela generosidade do papel, pelo conselho encantador das gravuras, os bons livros modernos não querem nos obrigar apenas a saber a vida, mas a gostar dela porém.

Ora, já de muito, bem que venho matutando em que talvez a verdade menos deva ser um objeto de conhecimento, que de contemplação... Não será essa diferença fundamental que separa o encanto maravilhoso de Platão, da secura sem beijos de Aristóteles, no entanto bem mais verdadeiro?... Não será esse engano das nossas civilizações, que torna tão rasteiras, monetárias,dogmáticas,em oposição às grandes civilizações da Ásia, bem mais gostosas e subtis?

E cheguei como certo esforço adonde pressentia que desejava chegar: o livro antigo, o manuscrito original, pela sua venerabilidade, pelo esforço de acomodação à leitura, pela exigência permanente de controle do que diz, não nos deixa nunca na psicologia individualista de quem aprende, mas no êxtase amplíssimo, difuso, contagioso da contemplação. Ele nos reverte à nossa antiguidade.

Deixem que eu diga, mas nas civilizações novatas que nem as desta América, os seres tão profundamente imorais, no sentido em que a moral é uma exigência derivada aos poucos do ser tanto indivíduo como social. Não nos custa a nós, americanos, aceitar religiões, filosofias, e mesmo importar civilizações aparentemente complexas. O nosso dicionário vai de A para Z, direitinhamente. Tem F tem L e tem R: Fé, Lei, Rei. O que não nos é possível importar é a precedência orgânica dessa Fé, dessa Lei e desse Rei, nascidos de outras experiências. Nós existimos pouco, demasiado pouco. Nós existimos em desordem É que nos falta antiguidade, nos falta tradição inconsciente, nos falta essa experiência por assim dizer fisológica da nossa moralidade que, só por si, torna a palavra “passado” duma incompetência larvar.

Isso nem o ótimo livro moderno conseguirá nos fornecer. O livro antigo é moral, com a subtil prevalência de não ser de uma moral ensinada (que é sempre pelo menos duvidosa) mas uma moral vivida. É um banho inconsciente de antiguidade. E si na mão do bibliófilo o livro mais antigo é uma volúpia incomparável, estou que devemos arrancá-lo dessas mãos pecaminosas e bota-lo nas mãos rápidas do moço. Convém tomar os moços mais lentos, e iniciar no Brasil o combate às velocidades do espírito. Que abundância de meninos-prodígios transfere a vida agora da beca difícil dos clérigos pro quépi chamariz dos generais... Vivo meio sufocando.

Eu desconfio que ninguém achará razão nestas palavras, quando o que me intitula é a Biblioteconomia. Mas para mim foram os pensamentos sossegados que pensei e quis dizer. Para mim, que envelheço rápido, o pensamento como a vista já não vão preciosamente perdendo aquele dom de precisão categórica, que define as idéias como as coisas nos seus limites curtos. De-fato a Biblioteconomia, é dentre as artes aplicadas, uma das mais afirmativas. Diante desse mundo misteriosíssimo que é o livro, a Biblioteconomia parece desamar a contemplação, pois categoriza a ficha. É engano quase de analfabeto imaginar tal desamor; e não foi senão por um velho hábito biblioteconômico que, faz pouco, me fichei na categoria dos envelhecidos, o que posso jurar ser pelo menos uma precipitação.

Isso é a grandeza admirável da Biblioteconomia! Ela torna perfeitamente acháveis os livros como os seres, e alimpa a escolha dos estudiosos de toda suja confusão. Este o seu mérito grave e primeiro. Fichando o livro, isto é, escolhendo em seu mistério confuso uma verdade, pouco importa qual, que o define, a Biblioteconomia torna a verdade utilizável, quero dizer: não o objeto definitivo do conhecimento, pois que houve arbitrariedade, mas um valor humano, fecundo e caridoso de contemplação. E pelo próprio hábito de fichar, de examinar o livro em todos os seus aspectos e desdobrá-lo em todas as suas ofertas, a Biblioteconomia rallenta os seres e acode aos perigos do tempo, tornando para nós completo o livro, derrubando os quépis e escovando as becas. (original de 1937)

*( São Paulo, 27 de março de 17051763)
in: Os filhos da Candinha, 1943. Martins: INL : Ministerio da Educação, 1976.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...