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24 de ago. de 2016

O nome do cão - Manuel Pina

Robert E. Wood

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.
E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: "É a vida..."

19 de set. de 2014

SCHWEIZER HOF HOTEL :: Manuel António Pina

 Maria Helena Vieira da Silva, 1981

Já aqui estive, já fiz esta viagem,
e estive neste bar neste momento
e escrevi isto diante deste espelho
e da minha imagem diante da minha imagem.

Não mudou nada, nem eu próprio; a mão
escreve os mesmos versos no papel obscuro.
Que aconteceu então fora de tudo?
De que esquecimento se lembra o coração?

Algum passado, alguma ausência,
se passam talvez a meu lado,
talvez tudo exista exilado
de alguma verdadeira existência.

E eu, os versos, o bar, o espelho,
sejamos só imagens noutro espelho
diante de algum Deus em cujo lasso
olhar se fundem outro e mesmo, tempo e espaço.


(n. 1943) Poesia Reunida. Assírio & Alvim, 2001

29 de ago. de 2014

Kindergarten :: Manuel António Pina


Konstantin Makovsky, 1882

As filhas brincam fora de o quê,
que infinitamente se interroga?
O fora de elas é dentro
 de que exterior centro?
 Quem está lá aqui
assistindo a isto e a mim,
 e às filhas brincando e ao jardim?
 Que coisa essencial em qualquer sítio perdi?
Também eu ou alguém brincou há muito tempo
em outro jardim, brincando.
 Sem que palavras lá estando?
Fora de que memória não me lembrando?



6 de ago. de 2013

UM CASAQUINHO PRETO de Manuel António Pina


Como podia saber que vivia 
num lugar tão distante 
e numa casa tão grande?
Que a mãe me falava 
de debaixo da terra,
e que o seu rosto era
uma sombra passada 
sobre mim debruçada? 
Que o seu nome me chamava
e eu já lá não estava, 
porque tinha crescido 
e porque tudo crescera comigo:
a casa, o quarto, os livros, 
até o céu crescera 
e se afastava;
e que eu próprio era 
uma recordação 
de que já mal me lembrava?


27 de jun. de 2013

Narciso de Manuel António Pina


John William Waterhouse.

Quando me dizes "Vem", já eu parti

e já estou tão próximo de ti

que sou eu quem me chama e quem te chama

e é o meu amor que em ti me ama.

Se me olhas sou eu que me contemplo

longamente através do teu olhar

e moro em ti e sou eu o lugar

e demoro-me em ti e sou o tempo.

Eu sou talvez aquilo que me falta

(a alma se sou corpo, o corpo se sou alma)

em ti, e afogo-me na tua vida

como na minha imagem desmedida:

Sol, Lua, água, ouro,

horizontalidade, concordância,

indiferente ordem da infância,

união conjugal, morte, repouso.

6 de ago. de 2012

Coisas que não há que há de Manuel António Pina


"Uma coisa que me põe triste é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)

Há tantas coisas bonitas que não há: 
coisas que não há, 
gente que não há, 
bichos que já houve e já não há, 
livros por ler, 
coisas por ver, 
feitos desfeitos, outros feitos por fazer, 
pessoas tão boas ainda por nascer e outras que morreram há tanto tempo! 

Tantas lembranças de que não me lembro, 
sítios que não sei, 
invenções que não invento, 
gente de vidro e de vento, 
países por achar, paisagens, 
plantas, 
jardins de ar, 
tudo o que eu nem posso imaginar porque se o imaginasse já existia 
embora num sítio onde só eu ia..."


SIMPLEX : Marcílio Godoi

A beleza, que é a parte mais sublime da arte, é filha mais velha da simplicidade. Sejamos dessa linhagem: simples. Foi sendo simples que Col...