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9 de set. de 2015

Louvor do lixo :: Adília Lopes (Lisboa, 1960)


(quem não viu Sevilha não viu maravilha)

É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa é a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terramoto ameaça
a entropia de cada dia
nos dai hoje
o pó e o amor
como o poema
são feitos
no dia a dia
o pão come-se
ou deita-se fora
embrulhado
(uma pomba
pode visitar o lixo)
o poema desentropia
o pó deposita-se no poema
o poema cantava o amor
graças ao amor
e ao poema
o puzzle que eu era
resolveu-se
mas é preciso agradecer o pó
o pó que torna o livro
ilegível como o tigre
o amor não se gasta
os livros sim
a mesa cai
à passagem do cão
e o puzzle fica por fazer
no chão

5 de set. de 2015

A Casa É Sua :: Arnaldo Antunes

não me falta cadeira
não me falta sofá
só falta você sentada na sala
só falta você estar

não me falta parede
e nela uma porta pra você entrar
não me falta tapete
só falta o seu pé descalço pra pisar

não me falta cama
só falta você deitar
não me falta o sol da manhã
só falta você acordar

pra as janelas se abrirem pra mim
e o vento brincar no quintal
embalando as flores do jardim
balançando as cores no varal

a casa é sua
por que não chega agora?
até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora

a casa é sua
por que não chega logo?
nem o prego aguenta mais o peso desse relógio

não me falta banheiro quarto
abajur, sala de jantar
não me falta cozinha
só falta a campainha tocar

não me falta cachorro
uivando só porque você não está
parece até que está pedindo socorro
como tudo aqui nesse lugar

não me falta casa
só falta ela ser um lar
não me falta o tempo que passa
só não dá mais para tanto esperar

para os pássaros voltarem a cantar
e a nuvem desenhar um coração flechado
para o chão voltar a se deitar
e a chuva batucar no telhado

a casa é sua
por que não chega agora?
até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora

a casa é sua
por que não chega logo?
nem o prego aguenta mais o peso desse relógio


30 de jul. de 2015

É condição indispensável da vida uma certa solidão :: Carl Jung

Vincent Willem van Gogh 

É condição indispensável da vida uma certa solidão e afastamento para o próprio bem e o dos outros,
caso contrário não podemos ser suficientemente nós mesmos. Será inevitável certa vagarosidade na  vida, que é como uma parada. 
Jung, Carl.  O livro vermelho. Editora Vozes, 2010. p. 314

28 de jul. de 2015

Dez poemas para M. R. :: LUIZ RUFFATO


Primeiro poema
Desperto: a noite farfalha
teu nome. Estiveste aqui
há pouco. O chão da casa
acaricia teus passos breves,
tua voz ilumina caligrafias
na parede, molda tua pele
o lençol ainda impregnado
de ausência… Desperto.


Segundo poema
Há qualquer coisa de azul na tarde que escapole para além dos edifícios.
E não é nuvem, não é véu. Não é espectro, labareda, água.
Talvez relógios enguiçados, canções interrompidas,
Talvez visitas inesperadas, primaveras extintas.
Talvez tua delicada sombra fugidia.

Terceiro poema
Dezembro emergiu do calendário
agarrado em teus cabelos negros.
Bóiam horas impalpáveis,
sobrenadam palavras ainda virgens.
No tumulto do oceano hostil
nossos sonhos resgatamos
conduzindo-os em cardumes
à região mais transparente.

Quarto poema
No último dia do último ano da falseada infância,
vomitando solidão pelas noturnas ruas da cidade,
não imaginava que, mil e quatrocentos quilômetros além,
tu já existias, forma entre formas, magros dedos
desenhavam efêmeros rabiscos na suada vidraça
de um inverno engastalhado na memória,
cicatrizes maculavam teu corpo inúbil,
pernas ocultavam silêncios entre os móveis,
noites aqueciam mágoas
aqueciam nódoas.
No último dia do último ano da falseada infância,
vomitando solidão pelas noturnas ruas da cidade,
só eu não existia ainda. Tu me inventaste.

Quinto poema
No princípio
eras palavra
verbo adjetivos
imagem subsumida
no etéreo universo.
Então encarnaste
sujeito predicados
nítida metáfora
flor calor cor
mar ar amar.

Sexto poema
Cativo, em silêncio
amanhas olores
de outras tardes
talvez havidas
no caos das horas
sempre as mesmas.
Mas lá, onde gemem
de frio as noites úmidas,
apascentavas sonhos,
interpretavas pegadas,
desertavas das dores,
refugiada em alheias vidas.
Quanto de ti ressuma
paredes trêmulas,
bocas silentes,
mãos vazias?
Quanto de ti
são lonjuras, distância,
poeira de estradas
nunca percorridas?

Sétimo poema
Quatro ou cinco motivos
para renunciar, eis a coluna
de haveres. E persisti,
embora tenham sumido
canetas e dias inteiros
no estranho calendário?
que carrego às costas.
Eu não sabia — tu não sabias —
mas as fomes de domingos
as madrugadas rodoviárias
os nomes que se apagavam
as errantes ofertas dos ventos,
tudo nos empurrava para a porta
nunca aberta, nunca cerrada.

Oitavo poema
E súbito compreendo o primeiro não:
meus frágeis pés tocaram a água fria
e vi, quando descidos dos retratos ovais,
rostos entulhavam a despensa de histórias.
E súbito compreendo o primeiro não:
meus braços cingiram a madrugada
rejeitando nomes, tão pouca terra
para tão grandes desaparecimentos.
E súbito compreendo o primeiro não:
o tempo avança do agora para o anteontem.

Nono poema
Ainda há pouco era dia.
Eu asilava na sombra
a estirpe dos antepassados.
Temia a chegada da tarde
com seus pássaros, vertigens,
cortejos, fantasmagorias.
No entanto, sem sabermos,
caminhávamos, ombro a ombro,
evitando as largas veredas.
E quando afinal a tarde desceu
entre labirintos, vales e cristais,
entrelaçamos as mãos inseguras.
Juntos, partilhamos o tempo,
reconstruindo pedra e pedra
a vida que quedou imediata.


Décimo poema
Não é a mesma tristeza de quando, assentado o dia,
recolhíamos a pálida solidão estendida no varal.
Não é a mesma tristeza de quando, cajados e ferrugem,
cerrávamos as portas ao uivo aflitivo das idades.
Não é a mesma a tristeza de quando, a lua ignorando,
pulsava insone a treva, sob prenúncio do fim absoluto.
Não é a mesma tristeza de quando, carregada a alma,
despetalávamos as cinzas reveladas no monturo.
Não é a mesma tristeza de quando, intuída à distância,
imaginava-a em imensos quartos cultivando abris e maios.
Não é a mesma tristeza de quando, pertencente ao nada,
inventei teus abraços esculpidos em promessas e pólen.
Não, não é a mesma. Essa, a de agora, é beleza de cântaros
descansando vinhos, aquários vazios a aguardar caranguejos.


2 de jul. de 2015

A Nossa Casa :: Arnaldo Antunes / Alice Ruiz / Paulo Tatit / João Bandeira / Celeste Moreau Antunes / Edith Derdik / Sueli Galdino

Stefan Caltia

Na nossa casa amor-perfeito é mato
E o teto estrelado também tem luar
A nossa casa até parece um ninho
Vem um passarinho pra nos acordar
Na nossa casa passa um rio no meio
E o nosso leito pode ser o mar

A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar

A nossa casa é de carne e osso
Não precisa esforço para namorar
A nossa casa não é sua nem minha
Não tem campainha pra nos visitar
A nossa casa tem varanda dentro
Tem um pé de vento para respirar

A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar

16 de mai. de 2015

O Regresso :: Manuel António Pina (1943-2012)

Paul Cezanne

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E como agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

13 de abr. de 2015

Nas cidades a vida é mais pequena (Alberto Caieiro / Fernando Pessoa) imagens: Lúcia Neto


Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que nossos olhos
nos podem dar
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver






7 de abr. de 2015

RECEITA DE PÃO :: ROSEANA MURRAY

Anders Zorn, 1889
é coisa muito antiga
o ofício do pão
primeiro misture o fermento
com água morna e açúcar
e deixe crescer ao sol

depois numa vasilha
derrame a farinha e o sal
óleo de girassol manjericão

adicionado o fermento
vá dando o ponto com calma
água morna e farinha

mas o pão tem seus mistérios
na sua feitura há que entrar
um pouco da alma do que é etéreo

então estique a massa
enrole numa trança
e deixe que descanse
que o tempo faça a sua dança

asse em forno forte
até que o perfume do pão
se espalhe pela casa e pela vida

in Receitas de olhar, ed. FTD , 1997

4 de mar. de 2015

MINHA CASA :: FELIX PITA RODRIGUEZ (1909-1990)

Heart - Jean David

Uma de cal e outra de lua,
esta é a fórmula precisa,
uma de cal e outra de lua.

Sobre a porta, a divisa
no escudo do portão.
Sobre a porta a divisa:

"No mais alto o coração."
Nada o estorve nem o impeça:
no mais alto o coração.

Que ele ponha o preço e ele decida
 - se é contra mim, tanto pior-,
que ele ponha o preço e ele decida:

Sempre direi: teve razão.


Tarot de la poesia, 1971-1972

21 de fev. de 2015

Minha cidade está toda cor-de-rosa :: Aldo Bonadei

Aldo Bonadei 
Não vás ainda o instante já foi
Irás de vermelho
O tempo irá contigo
Depois será outro tempo.
A cidade está toda cor-de-rosa
Cor da infância longínqua
Cidade imensa
Casa sobre casa
Sempre a mesma cor
Gás néon brinca
Sobre o azul
Inutilmente.

10 de fev. de 2015

Mudemos de Jorge Gomes Miranda

Mauricio Aurvalle 

Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira,
certificarmo-nos da existência do corpo
em novos lençóis, voltar a ter ilusões,
lugar propício para a curiosidade
de alguns que nos fazem acreditar
que a vida é um amplo anfiteatro
para as mãos.


9 de fev. de 2015

Canção III - Hilda Hilst

Giacomo Balla

A minha Casa é guardiã do meu corpo 
E protetora de todas minhas ardências. 
E transmuta em palavra 
Paixão e veemência 
E minha boca se faz fonte de prata 
Ainda que eu grite à Casa que só existo 
Para sorver a água da tua boca. 
A minha Casa, Dionísio, te lamenta 
E manda que eu te pergunte assim de frente: 
À uma mulher que canta ensolarada 
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?



Fonte:  Poesia: 1959-1979. Quíron; INL, 1980.

23 de dez. de 2014

UMA COISA É NECESSÁRIA :: HANS BØRLI (Noruega 1918-1989)

Claude Monet 


Uma coisa é necessária – aqui
neste nosso mundo díficil
de sem-abrigos e desterrados:

Fixares residência em ti.

Entra pela escuridão
e limpa a fuligem da lâmpada.

Para que as pessoas na estrada
possam entrever uma luz
em teus olhos habitados.

(1974)

10 de nov. de 2014

Figos de Alice Sant'Anna


Manfred Lutzius

ouvi que minha avó 
tinha paixão 
por fruta do conde e caqui
(imagino a colher de prata
separando o gomo 
da casca vermelha)
meu avô come figos religiosamente 
empurra o miolo 
para dentro e a fruta 
de repente se desdobra 
em flor, as pontas fazem cócegas 
na língua
todo dia minha mãe
amassa um abacate de manhã
e meu pai devora umas tantas
maçãs antes de dormir

hoje acordei cedo, fui à feira
as frutas têm gosto de casa


9 de out. de 2014

Meu Avô :: Manoel de Barros

Odilon Redon

Meu avô dava grandeza ao abandono.
Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos 
do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas a
conversar.
saia do fundo do quintal para dentro da
casa
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
a palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
e as borboletas se aproveitavam dessa
amplidão para voar mais longe.

15 de set. de 2014

COMER, COMER :: Clarice Lispector

Ekaterina Pozdniakova

Não sei como são as outras casas de família. Na minha casa todos falam em comida. “Esse queijo é seu?”  “Não, é de todos.”  “A canjica está boa?”  “Está ótima.”  “Mamãe, pede à cozinheira para fazer coquetel de camarão, eu ensino.”  “Como é que você sabe?”   “Eu comi e aprendi pelo gosto.”  “Quero hoje comer somente sopa de ervilhas e sardinha.”  ”Essa carne ficou salgada demais.”  “Estou sem fome, mas se você comprar pimenta eu como.”  “Não, mamãe, ir comer no restaurante sai muito caro, e eu prefiro comida de casa.”  “Que é que tem no jantar para comer?”
 
Não, minha casa não é metafísica. Ninguém é gordo aqui, mas mal se perdoa uma comida malfeita. Quanto a mim, vou abrindo e fechando a bolsa para tirar dinheiro para compras. “Vou jantar fora, mamãe, mas guarde um pouco do jantar para mim.”  E quanto a mim, acho certo que num lar se mantenha aceso o fogo para o que der e vier. Uma casa de família é aquela que, além de nela se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo. O fato é simplesmente que nós gostamos de comer. E sou com orgulho a mãe da casa de comidas. Além de comer conversamos muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo, conversamos sobre que roupa é adequada para determinadas ocasiões. Nós somos um lar.
In: A descoberta do mundo. Editora Nova Fronteira, 1984. p. 222

27 de jun. de 2014

Zalipie - Polônia




















Zalipie é uma vila situada no município de Olesno na Polônia. É conhecida por suas pinturas sobre madeira. Diz a tradição que o costume nasceu décadas atrás, quando uma Felicja Curylowa, querendo cobrir manchas de fuligem no teto de sua casa, pintou flores sobre elas. Pinturas semelhantes rapidamente foram reproduzidas por outras mulheres da aldeia e, assim, tornou-se a mais bela aldeia na Polônia. O costume foi mantida mesmo após o advento nos fogões - o problema da fuligem não existe mais - e gradualmente padrões de flores pintadas nas paredes tornaram-se mais sofisticados e mais evidente, tanto dentro como fora da casa e ao redor da casa. 
Atualmente, a vila organiza uma competição anual de pintura em torno da festa católica de Corpus Christi . No concurso as mulheres, maioria dos participantes,  apresentam as suas próprias criações de parede,  decorações florais que mantêm os elementos tradicionais aos quais agregam a sua própria interpretação.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...