Não te rendas, ainda é tempo
De se ter objetivos e começar de novo,
Aceitar tuas sombras,
Enterrar teus medos
Soltar o lastro,
Retomar o vôo.
Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem,
Perseguir teus sonhos,
Destravar o tempo,
Correr os escombros
E destapar o céu.
Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio queime,
Ainda que o medo morda,
Ainda que o sol se esconda,
E o vento se cale,
Ainda existe fogo na tua alma.
Ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o tens querido e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
Tirar as trancas,
Abandonar as muralhas que te protegeram,
Viver a vida e aceitar o desafio,
Recuperar o sorriso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo
Celebrar a vida e se apossar dos céus.
Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio te queime,
Ainda que o medo te morda,
Ainda que o sol ponha e se cale o vento,
Ainda existe fogo na tua alma,
Ainda existe vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um novo começo,
Porque esta é a hora e o melhor momento
Porque não estás sozinho, porque eu te amo
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
Mostrando postagens com marcador Viver. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Viver. Mostrar todas as postagens
14 de set. de 2021
24 de ago. de 2020
O viajante de Juan Bonilla
Ali de onde venho ninguém me retinha.
Sei que ninguém me espera aí para onde vou.
Pela janela desfilam imóveis as paisagens.
Seria maravilhoso não chegar a sítio nenhum.
Permanecer assim:
viajando de um lugar que já não existe
para outro que nunca existirá.
(poema incluído em Defensa personal (Antología poética 1992-2006), prólogo de Miguel Albero, Ranacimiento, Sevilha, 2009, p. 155).
20 de jul. de 2020
Poema Concreto de Thiago de Mello
Pedro Ruiz
O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.
A dor que te dói pelo avesso,
perdida nos teus escuros,
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.
Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes,
mas que é tua vida,
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens.
25 de mai. de 2020
Balanço de Débora Siqueira Bueno
L'Etang, c.1796-1875 Jean-Baptiste-Camille Corot
E aqui estou eu, cansada,
apenas por ter tomado um simples banho.
A alma já estava lavada
das culpas de tempos idos;
o que não quer dizer, de resto,
que tudo tenha sido perdoado.
Minha natureza não permite
o apagamento de alguns dos itens
encarnados na coluna de débitos.
Por vezes impera em mim um fremor de acertos
e quero porque quero a juventude perdida.
Depois amanso, bovina,
remastigo sem amargor o que foi mágoa,
e os restos do viver
não mais me assombram.
11 de jan. de 2020
Paz de Agustina Bessa-Luís
viver em paz não é viver;
(...) a paz é um absurdo,
como a realidade concreta é um absurdo
que é preciso recriar para
que se torne afecto do homem,
obra sua.
Agustina Bessa-Luís
27 de ago. de 2017
A Vida na Hora :: SZYMBORSKA, Wislawa ( 1923 — 2012)
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que se trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
— eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isto é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
In: Poemas. Companhia das Letras, 2011. p. 61
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que se trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
— eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isto é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
In: Poemas. Companhia das Letras, 2011. p. 61
28 de fev. de 2017
Uma vez eu irei de Clarice Lispector
imagem: Clarice Lispector
Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de dois e dois são quatro é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...In: Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
8 de fev. de 2017
Vida bordada :: Silvana Conterno
Kira Nichols
Em muitos matizes
Agulhas perfuram
Profundamente
Nossos tecidos
Forma custosa
Demorada
Muitas voltas, laçadas
Ponto atrás, quando preciso
Ponto haste, dando direção
Correntinha para amenizar
Um coração em rococó
Marco preciso com ponto cruz
Para os vazios infindáveis
Tentamos o ponto cheio
E segundo dizem
É pelo avesso que se vê
O capricho de uma vida
Nós e fios cortados
Arremate que nunca finda
30 de set. de 2016
Dez coisas que fazem a vida valer a pena de Rubem Braga
Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.
Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.
Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.
Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.
Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.
Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.
Viajar, partir…
Voltar.
Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio
Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.
fonte: As Boas Coisas da Vida. Record, 1988,
13 de jun. de 2016
A Vida na Hora :: Wislawa Szymborska
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que se trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando,
é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado-eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira
antes ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isto é justo-pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear
nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que se trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando,
é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado-eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira
antes ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isto é justo-pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear
nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
7 de nov. de 2015
BIOGRAFIA :: Cecília Meireles (07/11/1901 Rio de Janeiro 09/11/1964 )
Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
-- e não serei eu.
Repetirás o que ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
-- e nada disso serei eu.
Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
-- e continuarei ausente.
Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
-- isso seria eu.
Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
-- Como me poderão encontrar?
Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
-- nós mesmos nos procuramos.
E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres como a cascata pelas pedras.
-- Que mortal nos poderia prender?
6 de nov. de 2015
Dialética :: Vinícius de Moraes
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
MORAES, Vinícius de. Nova antologia poética. Org. por Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
14 de jul. de 2015
O QUE É :: Adriane Garcia (Belo Horizonte - MG - 1973 )
Os peixes nadam
Os pássaros voam
Os mamíferos têm filhos
Dependurados em tetas
Assim como nascem e morrem células
E se reproduzem bactérias
Assim como sai vida
De ovos
E da terra brotam
Sementes
Eu sofro
Ser de minha natureza.
12 de jul. de 2015
Ainda lembrei de suas palavras :: Mia Couto
Valentin Serov
Ainda lembrei de suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:-Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.
In: O último voo do flamingo
20 de abr. de 2015
Toda saudade é uma espécie de velhice :: João Guimarães Rosa
Joan Miro, 1925
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”Grande Sertão: Veredas.
17 de abr. de 2015
HOMEM EM PREPARATIVOS :: ANÍBAL M. MACHADO
Ando sempre em preparativos.
Acumulo material, encomendo peças. Junto o necessário. Tomo
todas as providências. E trato também da ornamentação.
Com isso, vou-me distraindo. Troco coisas e ideias. Alguns me
ajudam, servem-se também de mim. E todos assim nos distraímos
nesses preparativos.
Mas com que seriedade! Com que paixão!
Nos momentos de intervalo, construímos cidades, casamos,
discutimos, entramos na guerra.
Preparamo-nos todos para qualquer coisa que ainda não aconteceu.
Há dezenas de anos tem sido assim. Há milhares de anos...
adoro os detalhes que aliviam o peso do conjunto. O que me atrapalha,
porém, não é tanto o tempo perdido na escolha do material – isso
até me preenche as horas – o que me atrapalha é a rapidez com
que as coisas se deterioram.
Às vezes recebo intimações para acabar depressa. Mas desconfio
e faço cera. Acabar depressa, o quê?
Saio então a ver se encontro qualquer coisa que seja bem difícil
de achar – acontecimento ou mulher.
Meu medo é a interrupção dessa busca por colapso de entusiasmo
ou pela aparição fácil do objeto.
Procuro sempre... Procuro sem remitência. Invento novas dificuldades.
Adoro os obstáculos...
Vivo assim amontoando, renovando, corrigindo, experimentando,
caindo e me aprumando.
Assim não chegará jamais o dia da minha inauguração. Pois o meu
pavor é a viagem concluída, a coisa acabada...
o meu pavor é a estátua de pedra, o feixe de ossos gelando
na chuva ou debaixo da terra.
... enquanto vocês aí fora continuam procurando, procurando...
Não. Nunca serei inaugurado.
In: Cadernos de João. 1957
Acumulo material, encomendo peças. Junto o necessário. Tomo
todas as providências. E trato também da ornamentação.
Com isso, vou-me distraindo. Troco coisas e ideias. Alguns me
ajudam, servem-se também de mim. E todos assim nos distraímos
nesses preparativos.
Mas com que seriedade! Com que paixão!
Nos momentos de intervalo, construímos cidades, casamos,
discutimos, entramos na guerra.
Preparamo-nos todos para qualquer coisa que ainda não aconteceu.
Há dezenas de anos tem sido assim. Há milhares de anos...
adoro os detalhes que aliviam o peso do conjunto. O que me atrapalha,
porém, não é tanto o tempo perdido na escolha do material – isso
até me preenche as horas – o que me atrapalha é a rapidez com
que as coisas se deterioram.
Às vezes recebo intimações para acabar depressa. Mas desconfio
e faço cera. Acabar depressa, o quê?
Saio então a ver se encontro qualquer coisa que seja bem difícil
de achar – acontecimento ou mulher.
Meu medo é a interrupção dessa busca por colapso de entusiasmo
ou pela aparição fácil do objeto.
Procuro sempre... Procuro sem remitência. Invento novas dificuldades.
Adoro os obstáculos...
Vivo assim amontoando, renovando, corrigindo, experimentando,
caindo e me aprumando.
Assim não chegará jamais o dia da minha inauguração. Pois o meu
pavor é a viagem concluída, a coisa acabada...
o meu pavor é a estátua de pedra, o feixe de ossos gelando
na chuva ou debaixo da terra.
... enquanto vocês aí fora continuam procurando, procurando...
Não. Nunca serei inaugurado.
In: Cadernos de João. 1957
3 de fev. de 2015
Aprendi a viver :: Anna Akhmátova
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.
Tradução de Lauro Machado Coelho
19 de jan. de 2015
Poética :: Claudio Willer
então é isso
quando achamos que vivemos estranhas experiências
a vida como um filme passando
ou faíscas saltando de um núcleo
não propriamente a experiência amorosa
porém aquilo que a precede
e que é ar
concretude carregada de tudo:
a cidade refletindo para sua hora noturna e todos indo para casa ou então
marcando encontros improváveis e absurdos, burburinho da multidão circulando
pelo centro e pelos bairros enquanto as lojas fecham mas ainda estão iluminadas,
os loucos discursando pelas esquinas, a umidade da chuva que ainda não passou,
até mesmo a lembrança da noite anterior no quarto revolvendo-nos em carícias e
expondo as sucessivas camadas do que tem a ver – onde a proximidade dos
corpos confunde tudo, palavra e beijo, gesto e carícia
tudo gravado no ar
e não o fazemos por vontade própria
mas por atavismo
in: Pinto, Manuel da Costa.Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Seculo 21. Publifolha, 2006.
24 de dez. de 2014
Poema de Natal :: Vinicius de Moraes
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente
14 de dez. de 2014
Canção Final - Drummond
Jim Hughes
Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.
Assinar:
Postagens (Atom)
Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...
-
Tem de haver mais Agora o verão se foi E poderia nunca ter vindo. No sol está quente. Mas tem de haver mais. Tudo aconteceu, Tu...
-
A ilha da Madeira foi descoberta no séc. XV e julga-se que os bordados começaram desde logo a ser produzidos pel...