"SONHO Na verdade, sonhar é outra maneira de lembrar." Freud
Essa noite sonhei com o pai de minha mãe,
meu avô bonito e mudo.
No sonho ele falava comigo,
reclamava de eu ter dito bom dia.
– É porque eu gosto do senhor, Vô!
Estava no meu quarto de menina.
Acomodei-o para que dormisse,
mas ele prosseguiu e conversava.
Seus olhos claros tinham um brilho
que a vida embaçou e nunca vi.
A voz cascateava, alegre até,
num tom que também não conheci.
Meu avô falava grego e latim;
criança, quis achar sua linguagem.
Às vezes brincava quieta ao seu lado,
horas.
Olhava-o de soslaio, tímida sorria,
esperando que a vida aparecesse.
Uma vez vieram seus irmãos,
os nomes muito antigos:
Gamaliel, Arcelino,
Alberico, Pergentino.
Sóbrios, com seus chapéus na mão,
traziam os cheiros da fazenda.
Doce de leite, goiabada e rapadura
os presentes dados.
A conversa era pausada,
Siqueiras são circunspetos.
Sentados na varanda em frente ao rio
o que mais se ouvia era a voz das águas.
Foi quando ouvi a voz do meu avô,
única vez.
Meu avô me dava livros, muitos,
devolvidos à minha avó porque pensava
que me eram dados por engano.
Sobraram dois –
um, de botânica,
o outro, de uma coleção – Pensamento Vivo,
O pensamento vivo de Freud.
Meu nome está escrito –
a mim foi dedicado.
Foi assim que meu avô falou comigo,
só o descobri depois, muito depois.
Manuseio o livro amarelado,
repleto de anotações nas margens.
Sítio arqueológico, traz impressas
mensagens destinadas ao futuro.
Ao final encontro, frases soltas –
"O eterno presente – onde o tempo não passa.
Momento da liberdade,
onde não há recordações do passado,
nem as inquietações do futuro.
Porém, a vida palpita sempre.
Sonhada felicidade, o futuro,
visão de esperança".
Meu avô no sonho ria, satisfeito, os dentes lindos.