Mostrando postagens com marcador Sentimento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Sentimento. Mostrar todas as postagens

3 de out. de 2015


O que é o cérebro humano senão um palimpsesto imenso e natural? 
Meu cérebro é um palimpsesto e o seu também, leitor. 
Inúmeras camadas de ideias, de imagens, de sentimentos caem sucessivamente sobre seu cérebro, tão docemente como a luz.
 Pareceu que cada uma 
sepultava a precedente. Mas nenhuma, na realidade,e, pereceu.

 BAUDELAIRE, Charles-Pierre. Les Paradis Artificiels. Paris: Librio, 2005, p. 113.

19 de abr. de 2015

OS INFELIZES CÁLCULOS DA FELICIDADE :: Mia Couto

O homem da história é chamado Julio Novesfora. Noutras falas o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exacta, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurónios:
- É conta que se faz sem cabeça.
Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afectos. Do ponto de vista da algebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos a erva não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem de boi. E a cobra morde sem ódio. É só o justo praticar da dentadura injectavel dela. Na natureza não se concebe sentimento. Assim, a vida prosseguia e Julio Novesfora era nela um aguarda-factos. Certa vez, porém, o mestre se apaixonou por uma aluna, menina de incorrecta idade, toda a gente advertia essa menina é mais que nova, não dá para si.
- Faça as contas mestre.
Mas o mestre já perdera o calculo. Desvalessem os razoáveis conselhos. Ainda mais grave ele perdia o matemático tino. Já nem sabia o abecedário dos números. Seu pensamento perdia as limpezas da lógica. Dizia coisas sem pés. Parecia, naquele caso, se confirmar o lema quanto mais sexo menos nexo. Agora, a razão vinha tarde de mais. O mestre já tinha traçado a hipotenusa à menina. Em folgas e folguedos, Julio Novesfora se afastava dos rigores da geometria. O oito deitado é um infinito. E, assim, o professor ataratonto, relembrava:
- A paixão é o mundo a dividir por zero.
Não questionassem era aquela a sua paixão. Aquilo era um amor idimensional, desses para os quais nem tanto há mar, nem tanto há guerra. Chamaram um seu tio, único familiar que parecia merecer-lhe as autoritárias confianças. O tio lhe aplicou muita sabedoria, doutrinas de por facto e roubar argumento. Mas o matemático resistia:
- Se reparar, tio, é a primeira vez que estou a viver.
Corolariamente, é natural que cometa erros.
- Mas, sobrinho, você sempre foi de calculo. Faça agora contas à sua vida.
- Essa conta tio, não se faz de cabeça. Faz-se de coração.
O professor demonstrava seu axioma, a irresoluvel paixão pela desidosa menina. Tinha experimentado a fruta nessa altura que o Verão ainda está trabalhando nos açucares da polpa. E de tão regalado, arregalava os olhos. Estava com a cabeça lotada daquela arrebitada menina. O tio ainda desfilou avisos não vislumbrava ele o perigo de um desfecho desilusionista? Não sabia ele que toda a mulher saborosa é dissaborosa? Que o amor é falso como um tecto. Cautela, sobrinho, olho por olho, dente prudente. Novesfora, porém, se renitentava, inóxidável. E o tio foi dali para a sua vida. Os namoros prosseguiram. O mestre levava a menina para a margem do mar onde os coqueiros se vergavam, rumorosos, dando um fingimento de frescura.
- Para bem amar não há como ao pé do mar, ditava ele.
A menina só respondia coisas simples, singelices. Que ela gostava do Verão.
- Do Inverno gosto é para chorar. As lágrimas, no frio, me saem grossas, cheiinhas de água.
A menina falava e o mestre Novesfora ia passeando as mãos pelo corpo dela, mais aplicado que cego lendo braille.
- Vai falando, não pare ­ pedia ele enquanto divertia os dedos pelas secretas humidades da menina. Gostava dessa fingida distracção dela, seus actos lhe pareciam menos pecaminosos. Os transeuntes passavam, deitando culpas no velho professor. Aquilo é idade para nenhumas-vergonhas? Outros faziam graça:
- Sexagenário ou sexogenário?
O mestre se desimportava. Recolhia a lição do embondeiro que é grande mas não dá sombra nenhuma. Vontade de festejar deve eclodir antes de acabar o baile. Tanto tempo decorrera em sua vida e tão pouco tempo tivera para viver. Tudo estando ao alcance da felicidade porque motivo se usufruem tão poucas alegrias? Mas o sapo não sonha com charco se alaga nele. E agora que ele tinha a mão na moça é que iria parar? Uma noite, estando ela em seu leito, estranhos receios invadiram o professor essa menina vai fugir, desaparecida como o arco-íris nas traeiras da chuva. Afinal, os outros bem tinham razão chega sempre o momento em que o amendoim se separa da casca. Novesfora nem chegou de entrar no sono, tal lhe doeram as suspeitas do desfecho. Passaram-se os dias. Até que, certa vez, sob a sombra de um coqueiro, se escutaram os acordes de um lamentochão. O professor carpia as já previsiveis mágoas? Foram a ver, munidos de consolos. Encontraram não o professor mas a menina derramada em pranto, mais triste que cego sentado em miradouro. Se aproximaram, lhe tocaram o ombro. O que passara, então? Onde estava o mestre?
- Ele foi, partiu com outra.
Resposta espantável afinal, o professor é que se fora, no embora, sem remédio. E partira como? Se ainda ontem ele aplicava a ventosa naquele lugar? A ditosa namorada respondeu que ele se fora com outra, extranumerária. E que esta seria ainda muito mais nova, estreável como uma manhã de Domingo. Provado o doce do fruto do verde se quer é o sabor da flor. Enquanto a lagrimosa encharcava réstias de palavras os presentes se foram afastando. Se descuidavam do caso, deixando a menina sob a sombra do coqueiro, solitária e sózinha, no cenário de sua imprevista tristeza. Era Inverno, estação preferida por suas lágrimas.

 In "Histórias Abensonhadas"

19 de mar. de 2015

Parada cardíaca :: Paulo Leminski

Henri Matisse

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

25 de set. de 2014

PÁSSARO :: Adriano Nunes

Blenda Tyvoll

ao pássaro
o passo
rosas
asas

adentro-o
raspas
aspas
o ar

no centro
do sentimento
o céu
habitar. 

Fonte: Laringes de grafite. Editora: Vidráguas.

21 de ago. de 2014

Talvez quem vê bem não sirva para sentir :: Fernando Pessoa

Van Gogh 
Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.

8-11-1929
“O Pastor Amoroso”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994.  - 109.

15 de jul. de 2014

Escrita de Thomas Mann

Gabriel Metsu, 1664-1666

A felicidade do escritor é o pensamento que consegue transformar-se completamente em sentimento, 
é o sentimento que consegue transformar-se completamente em pensamento.

Fonte:Thomas Mann, Morte em Veneza

8 de jul. de 2014

Perguntas e respostas para um caderno escolar :: Clarice Lispector

Wassily Kandinsky, 1906

-Qual é a coisa mais antiga do mundo?
-Poderia dizer que é Deus que sempre existiu.
-Qual é a coisa mais bela?
-O instante de inspiração.
-E Deus quando criou o Universo não o fez no momento de sua maior inspiração?
-O Universo sempre existiu. O Cosmos é Deus.
-Qual das coisas é a maior?
-O amor, que é o maior dos mistérios.
-Das coisas qual é a mais constante?
-O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança.
-Qual é o melhor dos sentimentos?
-O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum mas é uma das minhas verdades.
-Qual é o sentimento mais rápido?
- O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
-Qual é a mais forte das coisas?
-O instinto de ser.
-O que é mais fácil de se fazer?
-Existir, depois que passa o medo.
-Qual é a coisa mais difícil de realizar?
-A própria relativa felicidade que vem do conhecimento de si mesmo.
(Depois as perguntas se tornaram mais complicadas).

In: A descoberta do mundo, 1984. p. 478

21 de fev. de 2014

Valsa Brasileira :: Chico Buarque e Edu Lobo



Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu

Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer

https://www.youtube.com/watch?v=Gx7EW-l9erg&feature=kp

30 de dez. de 2013

REFLEXIVO. :: Affonso Romano de Sant'Anna



 Remedios Varo, 1958

O que não escrevi, calou-me. 
O que não fiz, partiu-me. 
O que não senti, doeu-se. 
O que não vivi, morreu-se. 
O que adiei, adeus-se.

O lado esquerdo do meu peito: livro de aprendizagens. Rocco, 1992. p. 212

22 de mar. de 2013

Névoa de Fernando Pessoa


Amanda RaeK
Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas 

como verdadeiramente são — como são para os outros.

Sinto isto.

1915? Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 27.

17 de jan. de 2013

At the heart of it all de Rui Pires Cabral


Amigo, a longa noite sempre acaba
e por vezes é tão triste acordar e perceber
que juntos fizemos o solitário caminho
para o escuro de cada um. Como nos apela
essa travessia incerta pelo avesso de um desesperado
desejo de viver. Ao início há outro modo de encanto

que, uma vez esgotado, de novo se refaz:
sofreremos em comum o nosso tempo na cidade
e tudo o que dele pudermos compartir: a música,
a esquiva beleza de um verso, o sentimento
das coisas que entretanto perdemos
ou nunca chegámos a ter. Mas tu bem sabes

que a última canção desemboca fatalmente
no silêncio mais cruel – o que trazemos connosco
e não podemos sanar. Abre por fim a janela,
repudia outra vez o cansado mundo e o dia
que gastámos de antemão nessa funda vontade
de não estar, nada ser, nada sentir.


Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005.

4 de jan. de 2013

A mais profunda das alegrias e o mais pungente dos desgostos de José Saramago



"Quanto a imaginar como é possível juntarem-se em uma pessoa sentimentos tão contrapostos como, no caso que temos vindo a apreciar, a mais profunda das alegrias e o mais pungente dos desgostos, para depois descobrir ou criar aquele único nome com que passaria a ser designado o sentimento particular consequente a essa junção, é uma tarefa que muitas vezes foi empreendida no passado e que em cada uma delas se resignou, como um horizonte que se vai incessantemente deslocando, a não alcançar sequer o limiar da porta das inefabilidades que esperam deixar de o ser. A expressão vocabular humana não sabe ainda, e provavelmente não o saberá nunca, conhecer, reconhecer e comunicar tudo quanto é humanamente experimentável a sensível. Há quem afirme que a causa principal desta seriíssima dificuldade reside no facto de os seres humanos serem no fundamental feitos de argila, a qual, como as enciclopédias prestimosamente nos explicam, é uma rocha sedimentar detrítica formada por fragmentos minerais minúsculos, do tamanho de um/duzentos e cinquenta e seis avos de milímetro. Até hoje, por mais voltas que se dessem à linguagens, não se conseguiu achar um nome para isso." SARAMAGO, José. A caverna, São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.  302-303

1 de dez. de 2012

Explicação de Poesia Sem Ninguém Pedir de Adélia Prado



Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

27 de out. de 2012

A vida dos sentimentos é extremamente burguesa de Clarice Lispector

'Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.'

16 de out. de 2012

Dar a vocês o que sinto como flor de Clarice Lispector




Escrevo de Lausanne, sentada no parapeito do lago Leman. Perto tem uma orquestra com uma mulher tocando violino, uma marcha meio valsa, meio militar. Junto tem um hotelzinho estreito chamado Hotel du Port. Há montanhas a pique na outra margem do lago. Há uma fontezinha dividida em três ramos sobre uma bacia de pedra. Há uma criança comendo um biscoito. Uma mulher de chapéu branco num barco. Vocês quase que podem adivinhar que é sábado de tarde. O lago é de água doce e tem um cheiro gostoso de água. O lago é enorme e transparente. Junto de mim é esverdeado. Mas do meio para o fim está da cor do céu e a montanha mesmo está da cor do céu. Hoje à noite vai ter uma festa noturna no lago, sobre um barco. No banco está sentada uma mulher com o chapéu preto e fita branca enterrado até os olhos como em 1920 e tanto, lendo jornal. Isso que eu estou sentindo pode-se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor.
Lausanne, 13 de julho de 1946


6 de set. de 2012

Perguntas e respostas para um caderno escolar

- Qual a coisa mais antiga do mundo?
- Poderia dizer que é Deus que sempre existiu.
- Qual é a coisa mais bela?
- O instante de inspiração.
- E Deus quando criou o Universo não o fez no momento de Sua maior inspiração?
- O Universo sempre existiu. O cosmos é Deus.
- Qual das coisas é maior?
- O amor, que é o mundo dos mistérios.
- Das coisas qual é a mais constante?
- O medo. Que pena que não possa responder: é a esperança.
- Qual o melhor dos sentimentos?
- O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum mas é uma de minhas verdades.
- Qual é o sentimento mais rápido?
- O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
- Qual é a mais forte das coisas?
- O instinto de ser.
- O que é mais fácil de se fazer?
- Existir, depois que passa o medo.
- Qual a coisa mais difícil de realizar?
- A própria relativa felicidade que vem do conhecimento de si mesmo.


 In: A descoberta do mundo, 1984.  p. 478-9

5 de set. de 2012

Dança Dos Meninos Composição: Marco Antônio Guimarães, Milton Nascimento


Aleijadinho


Olha bem para mim
Dentro de meu sentimento e tudo de mim
Seja meu lar, uma canção, um carinho
Uma frase de paz
Te acorda é a dança o momento
A roda que vai embalando o amor
Canta um refrão, mostra um sorriso
Canta um refrão, mostra que quer viver
E posso lembrar 
A primeira noite que te vi entoar
Uma emoção
Tanto calor em seu rosto
Como em toda visão
É o mundo, é a senha
Pra que eu te sentisse ali
Força de um leão
Venha de lá anjo suave
Sem esperar grita que quer viver 

4 de set. de 2012

Todo o Sentimento de Chico Buarque


Louis LeBrocquy


Preciso não dormir
Até se consumar

O tempo da gente.

Preciso conduzir

Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.


Pretendo descobrir

No último momento

Um tempo que refaz o que desfez,

Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.


Prometo te querer

Até o amor cair

Doente, doente...

Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.


Depois de te perder,

Te encontro, com certeza,

Talvez num tempo da delicadeza,

Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.

1 de set. de 2012

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. Fernando Pessoa

    
John William Waterhouse- Penelope e os pretendentes    (1912)

Invejo-o — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. 
      Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço. 
      Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada... 
      De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo... Sim, croché...

fonte: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=5348

29 de ago. de 2012

Isto de Fernando Pessoa


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...