Camille Pissarro
Hoje tirei um tempo pra margear um caderno. Ou melhor, tirei um tempo pra voltar no tempo. O cheiro bom da minha mãe, a ansiedade de um novo ano na escola. Sim, eu já fui criança.Traçar aquelas linhas bobas não fazia sentido pra mim (não que hoje faça), mas, sem querer aos poucos a gente foi traçando as linhas da própria vida, reforçando os traços do nosso próprio caráter, indicando a direção que os sonhos deviam tomar.
Quando criança eu sentia estar perdendo tempo cobrindo de outra cor uma linha que já existia. Avisando àquele muro magro que ele devia barrar a passagem das letras, deter as ideias, frear os meus tantos pensamentos. Mas hoje, margeando um caderno qualquer, me lembrei que a minha mãe, na primeira série, fez esse árduo trabalho por mim, por horas, pouco depois de cobrir as capas com um plástico bonito, que eu mesmo escolhi.
No ano seguinte, ela segurou na minha mão para que eu não deixasse a reta torta. Mesmo com tudo torto, borrado, mesmo que eu parecesse um paciente precoce de Parkinson, mamãe elogiava. Pra ela tudo estava lindo; pra ela, o lindo era eu existindo.
Nos anos seguintes, eu mesmo cuidava de tudo. Eu mesmo bati o pé e reclamei das capas com bolinhas e bichinhos. O rapazinho reclamão, andava cheio de vontades, e mamãe ainda assim, achava graça de tudo. “Reclamar vai fazer com que isso termine mais cedo?”, não ia. E eu me contentava em chicotear as bordas do caderno com a bic mordida.
Hoje, margeando um caderno entendi que o tempo de quem tanto reclamei, passou. Eu rezei tanto pra crescer, que cresci sem medida. O mundo não é definido pelas margens chatas, retas ou tortas. O mundo acontece, metade, margem à dentro e, bem mais, margem a fora. Saudade boa, mãe.
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