31 de dez. de 2013

Cantiga de embalar :: Rainer Maria Rilke


                                                  Matizes - Namoro 
Gostava de cantar a alguém uma cantiga de embalar,
sentar-me a seu lado, e ficar sossegado.
Gostava de embalar-te murmurando uma canção,
estar contigo na orla do sono.
Ser a única pessoa acordada em casa
a saber que a noite está fria.
Gostava de ouvir cá dentro e lá fora,
ouvir-te, ouvir o mundo e os bosques.
Os relógios tocam a rebate,
e podes ver o tempo até ao fim escoar-se.
Ao fundo da rua um estranho passa
e incomoda o cão de um vizinho.
Por trás, o silêncio. Pousei os meus olhos
em ti como numa mão aberta,
e eles prendem-te ao de leve e deixam-te ir,
quando algo se move no escuro

         

30 de dez. de 2013

REFLEXIVO. :: Affonso Romano de Sant'Anna



 Remedios Varo, 1958

O que não escrevi, calou-me. 
O que não fiz, partiu-me. 
O que não senti, doeu-se. 
O que não vivi, morreu-se. 
O que adiei, adeus-se.

O lado esquerdo do meu peito: livro de aprendizagens. Rocco, 1992. p. 212

29 de dez. de 2013

Aquários pequenos de Valter Hugo Mãe

 William Stephen Coleman 

"aqueles peixes bonitos que vês dentro dos aquários pequenos, sabes que têm uma memória de uns segundos, três segundos, assim, é por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação. o américo respondeu-me, seria uma pena que não voltasse a lembrar de mim, senhor silva, não gosto dessa teoria dos peixes, porque assim não se lembraria de mim."


in : A máquina de fazer espanhóis. p. 240

28 de dez. de 2013

Mary Emma Hawthorne




















A vida oblíqua? :: Clarice Lispector


A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo.
In: Água viva. Editora Ática, 1984. p. 71.

Ideal dos amorosos


Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existe. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'

27 de dez. de 2013

Reflexivo :: Affonso Romano de Sant'Anna

O que não escrevi, calou-me
O que não fiz, partiu-me
O que não senti, doeu-se
O que não vivi, morreu-se
O que adiei, adeus-se

In: O lado esquerdo do meu peito.  Rocco, 1992

Caixa de fósforos de Laura Esquivel



“A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos, como na experiência, de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada; a vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos.”

In: Como Água Para Chocolate, Biblioteca Sábado

25 de dez. de 2013

Cartão de Natal :: João Cabral de Melo Neto


Sophie Anderson - Awake

Pois que reinaugurando essa criança

pensam os homens 

reinaugurar a sua vida

e começar novo caderno, 

fresco como o pão do dia;

pois que nestes dias a aventura

parece em ponto de vôo, e parece

que vão enfim poder

explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno

sua atração núbil para o dente;

que o entusiasmo conserve vivas 

suas molas, 

e possa enfim o ferro

comer a ferrugem 

o sim comer o não.

João Cabral de Melo Neto

24 de dez. de 2013

Poema de Natal :: Vinícius de Moraes

91
Childe Hassam
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Natividade

Gentile da Fabriano, 1423

Tiepolo

Gerard van Honthorst


Bosh 

Giotto







La Nativité, vers 1150. Cathédrale de Chartres. França

Na manjedoura :: Clarice Lispector

Arthur Hughes

Na manjedoura estava calmo e bom. Era de tardinha, ainda não se via a estrela. Por enquanto o nascimento era só de família. Os outros sentiam mas ninguém via. Na tarde já escurecida, na palha cor de ouro, tenro como cordeiro refulgia o menino, tenro como o nosso filho. Bem de perto, uma cara de boi e outra de jumento olhavam, e esquentavam o ar com hálito do corpo. Era depois do parto e tudo úmido repousava, tudo úmido e morno respirava. Maria descansava o corpo cansado, sua tarefa no mundo seria a de cumprir o seu destino e ela agora repousava e olhava. José, de longas barbas, meditava; seu destino, que era o de entender, se realizara. O destino da criança era o de nascer. E o dos bichos ali se fazia e refazia: o de amar sem saber que amavam. A inocência dos meninos, esta a doçura dos brutos compreendia. E, antes dos reis, presenteavam o nascido com o que possuíam: o olhar grande que eles têm e a tepidez do ventre que eles são.
A humanidade é filha de Cristo homem, mas as crianças, os brutos e os amantes são filhos daquele instante na manjedoura. Como são filhos de menino, os seus erros são iluminados: a marca do cordeiro é o seu destino. Eles se reconhecem por uma palidez na testa, como a de uma estrela de tarde, um cheiro de palha e terra, uma paciência de infante. Também as crianças, os pobres de espírito e os que se amam são recusados nas hospedarias. Um menino, porém, é o seu pastor e nada lhes faltará. Há séculos eles se escondem em mistérios e estábulos onde pelos séculos repetem o instante do nascimento: a alegria dos homens.

Para não esquecer. Editora Ática, 1984. p. 23

23 de dez. de 2013

Caminho de Guimarães Rosa

Anna Silivonchik

Fiz o caminho. Sem tomar direção, sem saber do caminho. 
Pé por pé, pé por si. Deixei que o caminho me escolha. 
Na travessia, só silêncio. O nenhuns-nada. 
O alegre, mesmo, era a gente viver devagarinho, miudinho, 
não se importando demais com coisa nenhuma. 
Nessa estrada, salvou-me a palavra.