28 de jan. de 2017

Do outro lado :: Silvana Conterno

Michael Holland
Construo pontes de palavras
caminhando por suas cordas
percebo pontos fracos 
falhas nos elos que as unem
talvez não devesse colocar
aquela vírgula para respirar
daria tempo para a sua fuga
Nas palavras de duplo sentido 
onde pés podem enroscar 
colocarei entre parênteses
Limarei palavras mais duras
pra aumentar a flexibilidade dos fios
palavras neutras não adiantam
nesta ponte acabam tomando partido
melhor que sejam as mais explícitas
fugindo um pouco do meu estilo
assim, quem sabe o encontre
no outro lado do rio.

27 de jan. de 2017

WALT WHITMAN :: A UM SER DESCONHECIDO

Yiannis Tsaroychis

Desconhecido ser que vai passando,
não imagina com que ansiedade
ponho em você meus olhos:
bem pode ser você
aquele que eu andava procurando ou 
aquela que eu andava procurando
(isso me ocorre como num sonho),
vai ver que com você eu já vivi
algures uma vida de alegrias,
e tudo vem à lembrança
quando passamos um pelo outro, 
afeiçoados e fluidos, castos e amadurecidos, 
junto comigo você cresceu
e foi menino ou menina junto comigo, 
com você comi e dormi,
seu corpo não se fez seu exclusivo
nem meu corpo foi exclusivamente meu, 
você me dá a alegria de seus olhos,
rosto, carne, ao cruzarmos,
e de mim leva em troca
a barba, o peito, as mãos,
eu não estou para lhe dizer coisas
mas para ficar pensando em você
quando sozinho me sento
ou quando acordo de noite sozinho,
sou de esperar e não duvido de que esteja 
a ponto de encontrar você de novo,
e aqui estou para ver
que eu não perco você.

tradução de  Geir Campos

26 de jan. de 2017

Morrendo como objeto :: ELIANE BRUM

Somos seres que morrem, isso não podemos evitar. Somos seres que perdem aqueles que amam, e isso também não podemos evitar. Mas há algo aterrador que persiste, e isso podemos evitar. E, mais do que evitar, combater. É preciso que os mortos por causas não violentas cessem de morrer violentamente dentro dos hospitais.

Aqueles que amamos se tornam vítimas de violência no espaço onde deveria existir cuidado. E nós, que os perdemos, também nos tornamos vítimas. Quando tudo acaba, não somos apenas pessoas que precisam elaborar o luto de algo doloroso, mas natural. O sistema médico-hospitalar faz de nós violentados. Não há apenas luto, mas trauma. E é preciso que comecem a responder por isso – ou a rotina de violências não cessará.

Escrevo sobre o morrer e sobre a necessidade de recusar a “obstinação terapêutica” há quase dez anos. Em 2008, acompanhei o cotidiano de uma enfermaria de cuidados paliativos por quatro meses, para contar da morte com dignidade, a partir da ideia de que quando não se pode curar, ainda se pode cuidar. Neste percurso, testemunhei o morrer de várias pessoas, cada uma à sua maneira, vivendo até o fim a sua singularidade. A morte como parte da vida, não como seu contrário.

Morrer com dignidade é morrer da forma que se escolheu morrer quando o fim se tornou inevitável. É escolher até onde os médicos podem ir na tentativa de prolongar uma vida que já não é vida, é escolher se quer morrer numa cama de hospital ou em casa, é escolher na companhia de quem se quer estar quando chegar a hora de partir.

Como a maioria de nós não sabe o que vai provocar sua morte, nem quando, existe um instrumento chamado de “Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)”. Particularmente, prefiro outro nome, “Testamento Vital”, porque é de vida que se trata. Mas apesar do nome burocrático, hermético para a maioria, este documento pode ser até mesmo escrito a mão. Nele, determinamos previamente nosso desejo, assim como os limites à equipe de saúde que nos atenderá, caso não estejamos em condições de expressar nossas escolhas quando o fim chegar. Caberá a nossos familiares levar esse documento à equipe de saúde e garantir que essa vontade seja cumprida. Ou, se nenhuma vontade foi expressa, escolher o que nos cabe quando já não for possível evitar a morte. Porque são eles que nos conhecem melhor – e porque possivelmente nos amam.

Ao entrar num hospital para morrer, deixamos de pertencer a nós mesmos

É preciso lembrar que o fim de uma vida é ainda vida – e não morte. Para respeitar a vida, é preciso respeitar aquele que vive. Só há respeito quando há reconhecimento de que ali há um sujeito. No momento em que o corpo se torna objeto, o sujeito é sujeitado. E o que é apresentado como cuidado vira tortura.

Comprovei da forma mais dura que, com exceção de alguns pequenos enclaves de resistência, morrer com dignidade é uma ficção no sistema médico-hospitalar brasileiro. No momento em que se entra num hospital e a morte se desenha como desfecho, aqueles que amamos deixam de pertencer a si mesmos. É uma espécie de sequestro, mas sem resgate possível.

No início de 2016, perdi um parente querido. Numa noite, logo após um dia particularmente feliz, um aneurisma em sua aorta rompeu-se. Depois de uma longa cirurgia, as possibilidades de recuperação eram escassas. Após mais de uma semana na UTI, em que ele não despertou nenhuma vez, complicações mostraram que não havia chance. Era preciso deixá-lo partir. Mas ainda assim ele seguia entubado, continuava sendo espetado por agulhas e manipulado de várias maneiras. Havia se tornado um objeto de intervenção. Quando manifestávamos nossa preocupação, a resposta era: “Não se preocupem, ele não sente nada”.

Receber a notícia da perda de alguém tão estrutural na vida é devastador. Podemos tão pouco neste momento. E o que podemos é cuidar. Para nós, não é um corpo sedado que ali está. É uma pessoa na grandiosidade de seus últimos momentos de vida.

Pedi então para conversar com um dos médicos. Ele me atendeu incomodado por estar sendo chamado. Manifestei, educadamente, a nossa preocupação com a continuidade dos procedimentos invasivos e a nossa necessidade de compreender melhor o que estava acontecendo e quais seriam os próximos passos. Já que não era mais possível desejar que aquele que amávamos vivesse, queríamos assegurar sua dignidade na morte e nos despedir em paz.

Estávamos no corredor da UTI, em pé. O médico não concordara em conversar com os familiares numa sala reservada, apesar de existir um espaço para isso. Ele alterou a voz, quase gritando. Claramente, sentia-se afrontado porque, como “doutor”, qualquer pergunta soava como um questionamento a uma autoridade que acreditava incontestável. Disse-me que não havia nada a ser questionado, que eles sabiam o que fazer – e estavam fazendo.

Ao ouvir a voz alterada do médico, o filho do homem que morria se postou ao meu lado. Ele, que perdia tanto, disse ao médico com toda a calma que não era aceitável ser grosseiro quando já sofríamos tanto. E reiterou que precisávamos compreender melhor o momento e os próximos passos para fazer as melhores escolhas. Depois de mais alguns minutos de rispidez, o médico afastou-se sem nos dar qualquer resposta. Estávamos num dos templos do sistema hospitalar brasileiro.

Naquele momento, além da dor da perda, já somava-se uma outra. Havíamos sido agredidos quando estávamos tão frágeis. Em vez de acolhimento, abuso. Nos dirigimos então à recepção da UTI para perguntar se havia um setor de cuidados paliativos. Estávamos confusos, sem informação. Nossa esperança era que alguém com um conceito mais humanizado sobre o morrer pudesse intervir e conseguisse responder a nossos questionamentos, assim como assegurar os direitos de quem morria. O recepcionista da UTI disse que iria pesquisar e, depois de alguns minutos, apareceu com um telefone num pedaço de papel. Era um domingo. Passei a manhã ligando e só encontrava uma gravação de secretária eletrônica. Perguntei se havia outra maneira de contatar o setor, o recepcionista me deu um celular de emergência da suposta equipe. Outra secretária eletrônica. Deixei recado. Nunca recebemos resposta.

Da sala de espera da UTI comecei a buscar orientação com médicos paliativistas que eu conhecia, trocando mensagens privadas nas redes sociais. Estes me escutaram e me orientaram pelo Twitter. Uma médica amiga foi ao hospital e entrou na UTI como visita para poder nos explicar o que estava acontecendo e o que poderíamos exigir que fosse diferente, a partir de nossa escolha de evitar procedimentos invasivos e desnecessários e poder alcançar a melhor despedida possível dentro das circunstâncias.

É importante sublinhar: foi preciso infiltrar uma médica para ter informações e tentar fazer escolhas que respeitassem aquele que morria. Num momento tão limite da vida de todos, foi necessário uma “clandestina” para tentar proteger quem partia. E o que era proteger e cuidar quando já não era possível salvar? Tratá-lo como uma pessoa, um ser com história – e não como um objeto, um invólucro de carne “que nada sentia”.

De repente, ele era um objeto de acesso controlado, protegido de nós, que o amávamos

Pouco antes da morte, soubemos por uma enfermeira que há pelo menos uma semana já era claro que este seria o desfecho. Mas nada disso nos foi contado. Possivelmente não era necessário que morresse numa UTI, possivelmente não havia sentido que permanecesse numa UTI. Possivelmente poderíamos ter nos despedido do nosso jeito. Certamente poderíamos ter escolhido bem mais.

Mas no instante em que ele entrou no hospital, numa situação de emergência, perdemos o acesso a quem amávamos. Tínhamos apenas o acesso controlado ao seu corpo “que nada sentia”. De repente, ele era um objeto sob vigilância, protegido de nós, que com ele compartilhávamos a vida e a história.

Seis meses depois, em agosto, perdi meu pai. Havíamos combinado de assistir juntos à abertura da Olimpíada. Como morávamos em estados diferentes, eu ainda estava no caminho quando ele passou mal. Foi levado ao hospital de ambulância. E lá sofreu um AVC e entrou em coma. Meu pai tinha 86 anos e já não havia chance para ele.

Quando cheguei com parte da família ao hospital, depois da pior viagem de nossas vidas, ele estava na UTI. As visitas eram permitidas apenas em três horários. Como só conseguimos chegar de madrugada, convenci a enfermeira a me deixar entrar. Ao perceber que ela ficaria ao meu lado, pedi que saísse porque eu queria privacidade. Antes de sair, ela fez um comentário: “Fazia muito tempo que você não via o seu pai?”.

Meu entendimento era que meu pai morria de velho. Se não morremos por tiro, acidente ou catástrofe, alguma doença nos mata em nossa progressiva corrosão física. No caso do meu pai, poderia ter sido o coração, que tantos sobressaltos lhe provocou durante a vida. Mas foi um AVC. Assim, apesar da dor sem medida que eu sentia, me era claro que a morte era inevitável. Qualquer tentativa de esticar sua vida, na sua idade e naquelas circunstâncias, seria excessiva. Na melhor das hipóteses, ele teria uma vida sem vida, o que meu pai não gostaria nem merecia. Me era claro – e era para todos nós – que tudo o que podíamos fazer naquele momento era assegurar a ele uma morte digna e garantir a nossa despedida.

Como ficar numa sala de espera enquanto quem amamos morre sozinho, entubado e cheio de fios?

Ao contrário dos principais hospitais do país, a UTI do centro de saúde em que meu pai for internado não permitia a permanência dos familiares junto à pessoa doente ou em processo de morte. Segundo o Estatuto do Idoso, ele teria direito a um acompanhante permanente. Mas ali a UTI suspendia a lei. Era preciso esperar pelos horários de visita. Mas como ficar numa sala de espera enquanto alguém que amamos morre sozinho, entubado e cheio de fios a alguns metros dali? E por quê?

Nós queríamos estar com ele. Queríamos fazer carinho no seu cabelo enrolado e tão branco. Queríamos dar beijo na testa e também nas bochechas. Queríamos afagar a sua mão. Queríamos ter certeza de que ele não estava passando frio. Queríamos contar histórias sobre ele. Queríamos dizer que o amávamos e que ele seguiria vivendo em nós.

“Ele não sente nada”, ouvi mais uma vez. Ainda que ele não sentisse, nós sentíamos.

Quando horas depois o médico declarou a “morte cerebral”, sabíamos que ele tinha partido. Mas o horário de visitas não tinha chegado. A despedida já não importava ao meu pai, mas importava a nós. Ele já não estava lá, mesmo que o coração ainda batesse. Mas nós precisávamos dessa despedida para poder seguir a vida sem ele. O que nos roubaram ao impedir que ficássemos com quem amávamos, ao reduzir meu pai a um corpo passível de visitação em horários determinados, jamais poderá ser devolvido.

Minha mãe queria estar com o homem com quem viveu 63 anos de um casamento de amor, mas o horário de visitas não tinha chegado. Na noite anterior ela tinha dormido aconchegada a ele, horas antes conversavam sobre o que comprariam na feira, e agora ela era impedida de tocá-lo. Me era difícil suportar a indignidade daquela situação, mas ver a minha mãe passar por essa violência me era insuportável. Ela nunca poderia ter sido impedida de ficar ao lado do meu pai, de mão com ele. Não há necessidade de manter uma pessoa numa condição irreversível em uma UTI. E não há sentido em manter alguém na UTI longe dos familiares.

Naquele momento, meu pai já estava morto, e eu sabia disso. Morte encefálica é morte. E ponto. Mas minha mãe ainda seguia aguardando o horário de visitas. Toquei a campainha para falar com a enfermeira. Disse a ela que meu pai estava morrendo e que precisávamos nos despedir. Que não poderíamos esperar o horário de visitas e que também não podia ser um de cada vez, que precisávamos estar com ele juntos.

Ela negou, dizendo que isso era contra as regras – ou contra o estatuto do hospital, não lembro o termo exato. Eu retruquei que nosso direito de estar com o meu pai no seu morrer estava acima das regras do hospital. A enfermeira chamou o médico de plantão. Havíamos nos tornado a família criadora de problemas. Já tínhamos inclusive ouvido mais uma pérola: “As famílias sempre têm dificuldades de aceitar mortes repentinas”. Era o que para essa profissional justificava a nossa impertinência de exigir direitos. O médico chegou. Disse a ele o mesmo que havia dito à enfermeira. Ele concordou com os argumentos e permitiu nossa entrada.

Uma mão asséptica descobria o corpo, uma mão trêmula voltava a cobri-lo

Nos reunimos todos em volta do meu pai. Ele já estava morto, mas fingimos que o coração batendo era vida. E nos despedimos. A enfermeira que antes tinha barrado nosso direito de nos despedir talvez não tenha suportado a interdição. Com a justificativa de medir os sinais vitais, arrancava o lençol dele, expondo o seu corpo. Minha mãe, de 81 anos, voltava a puxar o lençol para cobrir o homem que ela amava, o homem com quem criou uma família, o homem com quem dividiu a vida. A enfermeira voltava a tirar o lençol. Minha mãe o recolocava. Dois gestos em disputa, o impasse de uma época. A mão asséptica, pragmática, arrancando o lençol (e a humanidade) transformava meu pai num objeto. A mão trêmula, gasta de anos, voltando a cobri-lo com o lençol, devolvia a ele a humanidade e a história.

O direito de permanecer junto à pessoa querida, assim como o direito de se despedir, seguiu sendo negado às outras famílias que estavam na sala de espera. Parte delas, em vez de se juntarem a nós num movimento que seria mais potente porque coletivo, nos acusaram de “privilégio”. Era desesperador ouvir direito ser convertido em privilégio justamente por quem era violado num momento tão limite. Mas não havia tempo para argumentar. Era preciso cuidar agora do corpo do pai.

Por mais que a gente se prepare para perder, e eu me preparo há muitos anos, a morte é um buraco. Não há um dia sequer em que eu não sinta falta do olhar do meu pai. Sei que ele vive em mim, o reconheço na forma como eu escuto o mundo, no formato dos dedos dos meus pés. Meu sorriso é o dele. Na minha carne há palavras que foi ele quem disse, suas histórias correm no meu rio.

Estresse pré-traumático é a angústia produzida pela certeza de morrer como objeto

Mas há um buraco onde antes havia o olhar dele. Percebo que envelhecer e perder é também aprender a andar por aí com o corpo esburacado pelos olhares que a gente já não tem. Passamos a ser carregadores de ausências. E há que se abrir espaço-tempo para viver o luto, porque só assim a gente descobre como reencontrar a alegria mesmo com o corpo esburacado. E a alegria, a forma mais bonita de amor, é quase tudo.

Meu luto é fundo, mas sereno. A violência vivida, não. Ela me escava. E é com ela que me debato hoje. Perto de mim, aquele que perdeu o pai no início de 2016 nomeou o que ambos vivemos como “estresse pré-traumático”. Passamos a ficar em pânico com o que acontece com uma pessoa quando ela entra num hospital e, de imediato, é convertida num objeto. E num objeto sequestrado. Descobrimos que nada do que já deixamos escrito servirá para barrar a onipotência médica se o nosso processo de morrer acontecer dentro de uma instituição hospitalar. Que nosso corpo será virado e revirado por estranhos, espetado e penetrado por objetos, mesmo quando estivermos além da possibilidade de cura. Que só teremos informações pela metade e que estranhos escolherão por nós.

Descobrimos que tudo isso que somos numa vida nos será roubado no final. Não pela morte, mas por um sistema médico-hospitalar que reduz pessoas a objetos. Numa paródia com o inferno de Dante, a inscrição no portão dos hospitais poderia ser: “Deixai toda história, ó vós que entrais”. Nem morremos ainda e já somos reduzidos a um não ser.

Me preparei muito para cuidar de quem amava quando morresse. E não pude. Não consegui protegê-los. Não fui capaz de fazer valer nem os meus direitos nem os deles. Aceitar que morremos e que perdemos é duro, mas é preciso. É nossa condição de existir. Mas a impotência diante da violência e da violação de direitos é uma indignidade que não podemos seguir permitindo que aconteça.

É isso o que aquele que perdeu o pai primeiro descreve como estresse pré-traumático. Prometemos um ao outro impedir a redução a objeto, mas sabemos que fracassaremos. Porque fracassamos em proteger o pai dele e o meu de quem deveria cuidá-lo. Se nossa morte não for súbita, não conseguiremos voltar para casa para morrer entre os livros, com a nossa música, no espaço que lembra de nós, entre aqueles que conhecem a nossa história. O último ato da vida será o de virar coisa num hospital. E, assim, o estresse pré-traumático seria a expectativa dessa objetificação, como os prisioneiros que ouvem os gritos nos porões e sabem que sua vez irá chegar. A antecipação da tortura já é tortura.

A imagem do nosso trauma é a descrita pelo historiador Phillipe Ariès em seu livro O homem diante da morte: “A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras”. Pensávamos que podíamos escapar disso e cuidar da morte como parte da vida, mas a lógica do sistema nos esmagou. Lembro de uma mulher que entrevistei para uma das minhas reportagens sobre o morrer. Ao perceber o que fariam com seu marido, além da possibilidade de cura, ela e um filho fugiram com ele do hospital numa cena cinematográfica. Ela conseguiu encontrar um lugar em que ele pôde morrer em paz, mas ter de fugir para fazer isso revela o tamanho da distorção.

O uso da palavra “doutor” ecoa nossas piores distorções históricas

Naturalizamos essa lógica perversa em que se morre não como gente, mas como objeto. A assepsia do processo, os jalecos brancos, a linguagem que torna a maioria analfabetos, a informação que não é compartilhada, o poder da medicina sobre os corpos em nossa época histórica encobrem a perversão de um sistema em que bem no fim nossos direitos são suspensos. Se já não há história, não há sujeito. Se não há sujeito, não há direitos.

Não uso a palavra “doutor” para ninguém. Nem para médico, nem para advogado, delegado, procurador, juiz etc. O uso do “doutor”, no Brasil, ecoa nossas piores distorções históricas. E, sempre que evocado, volta a reeditá-las. Assim, escolho não usar como ato político. Mas em algum momento destes processos, me vi chamando médicos que violavam direitos de “doutor”. Percebi que queria agradá-los por duas razões: 1) a expectativa de que me tratassem com gentileza porque me sentia imensamente frágil; 2) o pavor de saber que eles tinham todo o poder sobre alguém que eu amava.

Ao fazer isso, eu assumia a posição de vítima. E esta posição, como é óbvio para qualquer um, tem um custo alto. Como a violência aparece travestida de cuidado, o que talvez seja a maior perversão do sistema, fica ainda mais difícil tratar violência como violência.

Percebo com clareza que a maioria dos profissionais de saúde não compreende que, a partir de um determinado momento, o que é apresentado como cuidado se torna tortura. Assim como o que é apresentado como zelo se torna excesso. Assim como não percebem que os corpos não lhes pertencem apenas porque ingressaram na instituição. E que, ao tomá-los, torna-se sequestro. Somos todos – e os profissionais de saúde também – filhos dessa época histórica. Por isso, quando questionados, os profissionais ofendem-se e sentem-se até mesmo injustiçados. Afinal, acostumaram-se a habitar um lugar idealizado e de enorme potência, o lugar de quem salva.

Esse estado de coisas, o funcionamento da instituição médico-hospitalar como espaço de absolutos, é naturalizado. Afinal, a medicina tem hoje o poder de decidir até mesmo quem é normal e quem não é – ou o que é normalidade. Ou, ainda, que a normalidade existe. O que somos não é mais algo complexo, cheio de camadas, mas um diagnóstico: depressivo, cardíaco, anoréxico, obeso etc. Quando esse poder de dizer o que uma vida humana é se une aos interesses da indústria farmacêutica, as chances de um olhar em que a pessoa não seja reduzida a um objeto se encolhem.

É preciso encontrar uma maneira de dar vários passos para fora e recuperar a capacidade do espanto. E assim poder enxergar o que acontece no espaço do hospital sem os véus encobridores da naturalização. Pegando o mais comum dos procedimentos, por exemplo. Uma simples injeção. Se não há justificativa, ela é não é cuidado. É tortura. Exatamente porque nem sempre é fácil identificar quando o cuidado se transforma em tortura, o questionamento se torna fundamental. E a escolha, ao final, só pode ser de quem morre ou de quem ama aquele que morre quando este já não pode escolher. O que para o profissional de saúde é digno, para aquele que morre pode não ser. Quem decide?

Se quisermos morrer como sujeitos, teremos que mudar a formação dos médicos nas universidades e botar limites na falta de limites

Abrir mão do poder absoluto sobre os corpos, porém, é algo difícil para grande parte dos médicos. Difícil por várias razões e, principalmente, porque significa aceitar a própria condição de impotência diante da morte. Assim, qualquer pergunta que questione esse poder, ainda que ela parta de uma pessoa fragilizada pela perda de alguém, se transforma numa ferida narcísica. Nesta época histórica, se quisermos morrer como sujeitos, teremos que mudar a formação dos médicos nas universidades. E botar limites na falta de limites.

Levei meses para compreender que me confrontava com duas situações inteiramente diversas. Uma natural, a da perda. A outra naturalizada, a da violência perpetrada pelo sistema médico-hospitalar. Uma é lidar com a condição humana de morrer. Com essa, podemos. A outra é lidar com a certeza de morrer como objeto. Com essa, não podemos. Uma é lidar com a dor da perda de quem amamos. Com essa, podemos. Outra é lidar com a violência de não poder assegurar o direito de uma morte digna a quem amamos. Com essa, não podemos. Uma é luto, outra é trauma. O luto se vive, o trauma precisa virar outra coisa para que a vida possa seguir. No meu caso, vira escrita. O luto – e a luta.

Num país em que o SUS está sendo atacado pelas forças do retrocesso, em que doenças como dengue e zika proliferam por falta de saneamento básico, em que a febre amarela ressurge no Sudeste, em que as pessoas morrem por falta de assistência, o debate sobre o direito de morrer com dignidade encontra pouco espaço. Mas é de vida que se trata. Se não sabemos morrer, jamais saberemos viver.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

25 de jan. de 2017

Falando de Amor :: Tom Jobim (Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (Janeiro 25, 1927 – Dezembro 8, 1994)

Se eu pudesse por um dia
Esse amor essa alegria
Eu te juro, te daria
Se pudesse esse amor todo dia

Chega perto 
Vem sem medo
Chega mais meu coração
Vem ouvir esse segredo
Escondido num choro-canção

Se soubesses como eu gosto
Do teu cheiro teu jeito de flor
Não negavas um beijinho
A quem anda perdido de amor

Chora flauta chora pinho
Choro eu o teu cantor
Chora manso bem baixinho
Nesse choro falando de amor

Quando passas tão bonita
Nessa rua banhada de sol
Minha alma segue aflita
E eu me esqueço até do futebol

Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro-canção

Lá no fundo do meu coração

24 de jan. de 2017

Cacau (Theobroma cacao, que significa alimento dos deuses)










Classificação científica
Reino: Plantae
Divisão: Magnoliophyta
Classe: Magnoliopsida
Ordem: Malvales
Família: Malvaceae
Subfamília: Sterculioideae
Género: Theobroma
Espécie: T. cacao
Nome binomial
Theobroma cacao
L.
O cacaueiro (Theobroma cacao, que significa alimento dos deuses) é a árvore que dá origem ao fruto chamado cacau. É da família Malvaceae e a sua origem é a América do Sul. Atinge entre 4 a 8 metros de altura e possui duas fases de produção: temporão (março a agosto) e safra (setembro a fevereiro). O cacau é a principal matéria-prima do chocolate, feito por meio da moagem das suas amêndoas secas em processo industrial ou caseiro. Outros subprodutos do cacau incluem sua polpa, suco, geleia, destilados finos e sorvete.
Por ser plantado à sombra da floresta, o cacau foi responsável pela preservação de grandes corredores de mata atlântica no sul do Estado da Bahia no Brasil. Este sistema é conhecido como "cacau cabruca", do termo "brocar" (ralear). Recentemente, foi criado o Instituto Cabruca que, junto com outras instituições ambientalistas, vem desenvolvendo projetos de pesquisas e extensão sobre o tema, estudando formas de manter essa vegetação nativa associada ao cacau.
A civilização Maia e mexicana (principalmente a Asteca), de mesma raiz, possuía dois vocábulos (kab e kaj) que, numa mesma palavra, formavam a expressão suco amargo picante(kabkaj) um sabor bastante apimentado. Segundo historiadores e desenvolvedores da geografia como o foi Américo Vespúcio, do Novo Continente, o nome atual foi praticamente dado por Cristóvão Colombo, apreciador do chocolate com gosto apimentado, e foi um dos primeiros a levar o conhecimento ao Velho Mundo, espalhando a planta, por onde andava. Assim, a bebida originada deste suco era nomeada de kabkajatl (segundo Cristóvão Colombo, onde as três últimas letras desta palavra significavam "líquido". Os espanhóis colonizadores tinham dificuldades de pronunciar a palavra e sempre colocavam um hu nas palavras dos índios mexicanos. Desta maneira, a palavra acabou transformando-se em kabkajuatl e, futuramente, pela ação popular, em cacauatl.
A cacauatl foi modificada pelos espanhóis, passando a ser tomada quente e com leite e açúcar, basicamente, uma vez que se juntou muitos outros produtos para retirar o gosto apimentado, que nem sempre é apreciado pelo consumidor comum. Recebeu, então, um novo nome: chacauhaa (chacau = quente; haa = bebida). Depois, houve confusão entre as palavras, das bebidas quente e fria, dando origem a palavra chocolate.
História
O cacau é originário das regiões tropicais da América Central. Era considerado pela civilização maia, por ser uma fruta apimentada, um alimento que deveria ser ingerido com "parcimônia e elegância", devido ao seu sabor amargo; e era dado, diretamente pelos deuses aos homens; antes de Cristóvão Colombo, era consumido apenas pelos Sacerdotes da e para a Entidade Sol. E, de tão importante, virou até moeda de troca o "Cacau" ou "Solaris" (outro nome da mesma moeda). Nessa época, no Brasil colonial, primeiramente e depois com a exportação, a partir de 1808, para toda a América Latina, pois Maria I de Portugal, Brasil e Além-Mar aceitava essa "quase-moeda", o "cacau" e/ou "solaris" (casa do sol), como crédito. Não se fazia o cacau o que conhecemos hoje como Chocolate. Fazia-se uma bebida de sabor amargo - apimentado, com as sementes torradas e moídas misturadas com água, "semelhante ao preparo do cafezinho", da forma de Cristóvão Colombo), que muitas vezes acrescentava o café à bebida apimentada sagrada dos mexicanos. Segundo alguns estudiosos, atualmente acrescenta-se a pimenta ao chocolate, para voltar ao sabor de antigamente.
Nos nossos dias, o chocolate movimenta globalmente uma economia de 60 bilhões de dólares/ano, enquanto os produtores de cacau ficam apenas com 3,3% da renda gerada.
No Brasil, ele foi cultivado primeiramente na Amazônia, onde já existia em estado natural, próximo ao clima do México, devido ao rio Amazonas. Depois, pelo rio Amazonas, passou para o Pará e pelo mar chegou finalmente à Bahia, onde melhor se adaptou ao solo e ao ambiente marinho, e causou o chamado "Boom" da época de 1930.

O cacaueiro é uma planta de clima quente e úmido que prefere o solo argilo-arenoso. Sua propagação se dá por sementes (seminal/sexuada) e vegetativa (assexuada). Por ser uma planta umbrófila, vegeta bem em sub-bosques e matas raleadas sendo, portanto, uma cultura extremamente conservacionista de solos, fauna e flora. Pouco mecanizada, é uma cultura que proporciona um alto grau de geração de emprego. Encontrou no sul da Bahia um dos melhores solos e clima para a sua expansão.
O cacau é cultivado em cerca de 17 milhões de hectares em todo o mundo. A produção somada de Costa do Marfim e Gana representa 60% da oferta global. 
O Estado da Bahia produz atualmente cerca de 95% do cacau do Brasil (país cuja produção corresponde a mais ou menos 5% da mundial, sendo a Costa do Marfim o maior produtor do planeta, com aproximadamente 40% do total).

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.