22 de jul. de 2020

Observo :: Adam Zagajewski

Observo William Blake, que descobria anjos
nas copas das árvores todos os dias,
encontrou Deus nas escadas
da sua pequena casa e via luz em vielas sujas —
Blake que morreu cantando alegremente
numa Londres apinhada
de prostitutas, almirantes e milagres,
William Blake, gravador, que trabalhou
e viveu na pobreza mas não em desespero,
que recebeu sinais ardentes
do mar e do céu estrelado,
que nunca perdeu a esperança, pois a esperança
renascia sempre como a respiração,
vejo os que como ele caminharam por ruas sombrias,
na direcção da orquídea rósea da madrugada.

Adam Zagajewski
in “Eternal Enemies”. Editora Farrar, Straus and Giroux, EUA, 2008

20 de jul. de 2020

Poema Concreto de Thiago de Mello


Pedro Ruiz

O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso, 
perdida nos teus escuros, 
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes, 
mas que é tua vida, 
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens. 

13 de jul. de 2020

Al-Mu'tamid, "Só eu sei ..."




Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.

Al-Mutamid Alã-l-lãh ibn 'Abbãd Abu-l-Qasin Muhammad nasceu em Beja (Portugal) em 1040 e morreu em Agmat (Marrocos) em  1095.
Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".

8 de jul. de 2020

Gato num apartamento vazio :: Wislawa Szymborska

Morrer  isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada

mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa

na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.

As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,

espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre as patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.

Poemas. Companhia das Letras, 2011. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien

Un gato en un piso vacío : Wislawa Szymborska

Morir, eso no se le hace a un gato.

Porque qué puede hacer un gato
en un piso vacío.
Trepar por las paredes.
Restregarse entre los muebles.
Parece que nada ha cambiado
y, sin embargo, ha cambiado.
Que nada se ha movido,
pero está descolocado.
Y por la noche la lámpara ya no se enciende.

Se oyen pasos en la escalera,
pero no son ésos.
La mano que pone el pescado en el plato
tampoco es aquella que lo ponía.

Hay algo aquí que no empieza
a la hora de siempre.
Hay algo que no ocurre
como debería.
Aquí había alguien que estaba y estaba,
que de repente se fue
e insistentemente no está.

Se ha buscado en todos los armarios.
Se ha recorrido la estantería.
Se ha husmeado debajo de la alfombra y se ha mirado.
Incluso se ha roto la prohibición
y se han desparramado los papeles.
Qué más se puede hacer.
Dormir y esperar.

Ya verá cuando regrese,
ya verá cuando aparezca.
Se va a enterar
de que eso no se le puede hacer a un gato.
Irá hacia él
como si no quisiera,
despacito,
con las patas muy ofendidas.
Y nada de saltos ni maullidos al principio.

6 de jul. de 2020

Nasce uma orquídea de Carlos Drummond de Andrade



“Entre as desesperanças da hora, e à falta de melhores notícias, venho informar-lhes que nasceu uma orquídea.
Nasceu, isto é, foi batizada. Seu nome de batismo é o do cronista Rubem Braga. A partir deste ano, há uma orquídea com o nome do Braga, ou, se preferem, o Braga virou orquídea.
Physosiphon Bragae Ruschi tem raízes esbranquiçadas, como Braga tem a cabeleira; seu caule primário é recoberto de bainhas agudas, como agudas são as observações que o Braga faz sobre a vida, os homens, as mulheres e as coisas. Suas flores são comumente geminadas, raramente solitárias. Aí parece haver uma contradição com a natureza do Braga, que combina solidão e geminação, mas, pensando bem, ele é um solitário orquidáceo comunicante, raramente desligado de outra flor.
Augusto Ruschi, sábio admirável, percebeu claramente a relação Braga-terra ao dedicar ao capitão a orquídea vermelho-púrpura. Não é todo mundo que merece virar nome de flor. A maioria merece justamente o contrário. No caso do Braga, se a orquídea souber, deve ficar satisfeita.”
Carlos Drummond de Andrade, “Nasce uma orquídea” , Jornal do Brasil (1970)

4 de jul. de 2020

POR QUE CANTAMOS :: Mario Benedetti

Se cada hora vem com sua morte

se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

1 de jul. de 2020

Prisão domiciliar :: Humberto Werneck

Em prisão domiciliar há três meses e meio, estou pensando em requerer livramento condicional. Acho que encararia numa boa até a tal tornozeleira eletrônica. Um par, caso a lei imponha isonomia ortopédica. 
Não me tome, por favor, ao pé (ou tornozelo) da letra: sem chilique ou coitadice, quero apenas que me seja permitido sair de vez em quando à rua, atividade a que me habituei, me lembro ainda, praticamente desde que aprendi a andar, e que o atual regime de reclusão veio converter em aventura temerária, numa espécie de safári urbano. Com o direito de ir, aceito o dever de vir, ou seja, de voltar à cela. De máscara, direitinho, mas sem nada de bandido mascarado. 
Falei em aventura temerária, em safári urbano, e acredite que não estou exagerando. Nesses três meses e meio, foram raras as ocasiões em que ousei abrir parênteses na rotina de encarcerado. Nenhuma delas, para meu desgosto, me levou à padoca para o semanal Café de Quinta em companhia do Ivan, do Paulo, do Edney, do João e, até recentemente, o Oswaldo, que teve a sabedoria de se mandar deste mundo antes que nele se instalasse a pandemia. Nem à livraria Zaccara, que ultimamente vinha sediando os encontros da Academia Perdiziana, não de letras, de Litros, de que já falei aqui, com direito, nas melhores noites, a canja do Tomzé, do Celso Adolfo ou do Renato Braz.
Saí três vezes apenas, e em todas experimentei um sobressalto, uma aceleração de batimentos cardíacos de contraventor em início de carreira. A primeira escapada foi para confiar ao Pedro, meu barbeiro, uma cabeleira que avançava, qual erva daninha, por sobre as orelhas, ameaçando eliminá-las da paisagem corporal. Confesso esta fraqueza: a cobertura capilar, quando excessiva, faz crescer em mim também o sentimento de que algo não vai bem no interior da caixa craniana. Se você me flagrar um dia com o coco rapado, esteja à vontade para deduzir que a situação, antes grisalha, ficou preta. 
A segunda evasão foi determinada por um acidente odontológico: como há males que vêm para o mal, em plena pandemia quebrei um molar. Sabe Deus a cautela com que venho desde então mastigando. A terceira escapada, por fim, no Dia das Mães – que, não me bastasse a orfandade, pela primeira vez passei sozinho –, pode ser em parte atribuída a um reflexo temporão do repórter que fui por tantos anos. Preparava meu café, bem cedo, quando me chegou, vindo da rua de cima, um alarido de exagerados decibéis. 
Burlando a amorosa vigilância dos filhos, enfurnados bem longe em suas tocas, enchi-me de coragem e fui, o coração aos pulos, conferir o que me parecia manifestação política em horário inusitado, no qual não é comum haver alguém já de pé pela Pátria. Não era; em frente a um prédio, desses que se chamam “Maison” ou “Château” alguma coisa, duas dezenas de pessoas tinham armado homenagem-surpresa a uma senhora, por certo mãe de alguém ali, cuja triunfal chegada à varanda pude presenciar. 
De volta à furna, levei comigo, além do desapontamento cívico, a sensação, experimentada nas ocasiões anteriores, de que me havia exposto a riscos insensatos. Será amostra disso que o pessoal deu de chamar de “novo normal”? Então vai ser assim a vida daqui para a frente? A compra de um pãozinho ali na esquina ganhará o vulto de empreitada audaciosa? Beijos e abraços serão substituídos, em caráter permanente, por cotoveladas, ainda que afetuosas? Vírus, agora, só de computador? Poliana anda dizendo que não, que tudo vai acabar bem, e mais, que “sairemos maiores” dessa pandemia. Na avaliação sombria de um nublado cupincha meu, porém, até mesmo o sexo presencial, “tá lembrando?”, não se dará doravante sem observância de severo protocolo. Como recita a claque do Capitão Cloroquina, diz ele, é bom já ir se acostumando, pois nosso autoenjaulamento preventivo “vai durar, por baixo, mais uns seis meses”. Deus não o ouça, amigo! Amigo?
***
Entre a Poliana e esse nuvem-negra, cada qual vai se ajeitando. A experiência, também aqui, é pedagógica, e ao falar dela o perigo é você resvalar para chatices de autoajuda. 
No caso dos avulsos, entre os quais me incluo, atravessar sem companhia as 24 horas do dia, cada uma delas com todos os seus 60 minutos, é coisa de acarretar, além de bocejos de tédio e surtos de melancolia, uns tantos riscos. Entre eles, o da pura e simples avacalhação da pessoa confinada: na ausência de testemunhas, pode dar-se progressiva e nem sempre consciente perda de compostura, potencialmente desastrosa lá adiante, quando enfim se restabelecer o convívio social – se é que um dia chegaremos lá, duvida o nuvem-negra. Numa dessas lives às quais ultimamente nos agarramos como náufragos – e que a alguns parecem mais interessantes que os encontros em carne e osso ora suspensos –, um conhecido contou que vem tomando mais cuidado desde o dia em que se flagrou, felizmente a tempo, quando saía de cueca para desovar o lixo no térreo. Muitos nem cueca estariam usando, observou alguém, com jeito, desconfiei, de quem falasse de si mesmo. 
De minha parte, ainda sem episódios indumentários capazes de chocar a vizinhança, tenho sentido, admito, uma necessidade do Anjo da Guarda que meus pais contrataram no meu primeiro dia, e cujos serviços, cada vez maiores, rudemente dispensei em algum degrau da adolescência. Seria bom tê-lo de volta, não mais para zelar pela higiene da alma, pois para essa já não parece haver detergente espiritual que dê conta. Um anjo da guarda, com minúsculas mesmo, para me chamar às falas se um dia, distraído, eu estiver prestes a ir ali embaixo, apanhar meu Estadão, nos mesmos trajes com que a alada & desvelada criatura me viu chegar ao mundo. Pandemia, pandemim.
Na condição de decano no condomínio onde vivo, e sendo nele o único morador na melindrosa faixa de risco, tenho sido o maluco, por ora solitário, que todos os dias, durante uma hora, se dá em espetáculo ao caminhar aceleradamente em torno dos dois predinhos do Cosme e Damião, só não tão antigos quanto o arfante, bufante, quase estertorante senhor que gira sem parar, qual hamster em gaiola, para no final contabilizar mais 5 quilômetros percorridos. Em três meses e meio, são mais de 500, suficientes para me levar, suponhamos, ao Rio de Janeiro. Taí, encaro. Mas só tem conversa se vier a tornozeleira de que já sou merecedor.

O Estado de S. Paulo, 30/6/2020

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...