29 de jun. de 2021

Eucanaã Ferraz: "18.05.1961"


Sandro Botticelli

Nasci num lugar pobre,

onde o hospital era longe,

onde era longe a estrada

e os anjos não conheciam:


Nasci mês de maio, azul

de tardes macias,

de pai José,

mãe Maria.


Batizaram-me: Terra Prometida.

Terra pobre, onde a felicidade passa 

longe, mas daqui eu a vejo

e todo o meu corpo brilha.


FERRAZ, Eucanaã. "18.05.1961". In:_____.  Livro primeiro. Rio de Janeiro: Edições do autor, 1990. 

São Pedro :: Fernando Pessoa


Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos três que traz velhice
Às festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um fenómeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho dessas chaves –
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquele passo do Evangelho
Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso – fecharem-me – não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu céu,
Entre os santos do paraíso,
(A liberdade – Deus dá a Deus –
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu
Faz-me terríveis cócegas no juízo.

Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongórica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exausto,
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.

Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O pior é que nada disso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cínicos desdéns.
Que diabo, és uma série de ninguéns.
O Santo são as chaves, e não tu.

Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatídico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns tu fundaste a Roma do Papado
(Andavas bêbado ou enganado
Ou esqueceste
O teu posto quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideias que ele faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo –
Umas barbas com S. Pedro lá por trás.

É difícil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.

Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo António, S. João, S. Pedro –
De popular, que bem que soa!)

Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?

Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Como um chavelho,)

Nas ruas
O povo anda com alegria,
É fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.

Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha.
Teu último gesto seja,
Um gesto volvente e mudo.
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas do Inferno, e da Verdade.


9.6.1935.

22 de jun. de 2021

Por si :: Sandra Niskier Flanzer

Gauguin


Quem quiser passar pela vida,

que aprenda com o sol:

ele é fogo: por força de si, se impõe.

Mas nasce e morre todos os dias,

ilumina o que vinga e depois esquece

e, a um só tempo, sabe sumir e se pôr.


FLANZER, Sandra Niskier. "Por si". In:_____. O quinto (dos infernos). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.

18 de jun. de 2021

Não sinto :: Angela Melim

Fernando Botero


Não sinto

(muito mais)

falta

nem saudade.


Estou tomando gosto das coisas.


Figuras e linguagem.


Uma laranja

diminutivo

sopinha quente

um sorriso

uma boa chuveirada.


O verão!

Como é colorido.

Super.


O Rio de Janeiro.

Uma viagem.

Contradições. Sinônimos.


Que boa a mão da idade.


In: FÉLIX, Moacir. 41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: Funarte, 1998.

15 de jun. de 2021

O momento de :: António Ramos Rosa


 Zhang Xiaogang


Talvez seja o momento de.

Mesmo sem esperança. E ele escreve:

nenhum impulso para ti

neste espaço deserto.


Ele perscruta entre as pedras e as sombras.

Nada vê. Ignora. 0lha.

Que traços são estes,

qual a origem destas palavras nulas?


Ele escreve. O seu desejo é o desejo

de tornar habitável o deserto.



 A nuvem sobre a página. Lisboa: Dom Quixote, 1978.

7 de jun. de 2021

Um pouco sobre a alma :: Wislawa Szymborska

Às vezes temos uma alma.

Ninguém a tem o tempo todo

e para sempre.


Dia após dia,

ano após ano

podem se passar sem ela.


Às vezes ela só se aninha

por mais tempo

nos enlevos e medos da infância.

Às vezes só no espanto

de estarmos velhos.


Raramente nos assiste

em tarefas maçantes

como mover armários,

carregar malas

ou percorrer uma distância com o

sapato apertado.


Quando é para preencher

formulários

ou picar carne,

costuma tirar folga.


De mil conversas nossas

participa de uma,

e mesmo assim nem sempre,

pois prefere o silêncio.


Quando nosso corpo começa a doer e doer,

sai de fininho do seu plantão.


É difícil de contentar:

não lhe agrada nos ver na multidão,

nem nossa luta por uma vantagem

qualquer,

nem o matraquear dos negócios.


A alegria e a tristeza

para ela são dois sentimentos

diversos.

Somente quando estão unidos

se faz presente entre nós.


Podemos contar com ela

quando não temos certeza de nada

e temos curiosidade de tudo.


Dos objetos materiais,

gosta dos relógios com pêndulo

e dos espelhos, que trabalham com zelo

mesmo quando ninguém está olhando.


Não revela de onde vem

nem quando vai sumir de novo,

mas está claro que espera tais perguntas.


Parece que,

assim como ela nos é necessária,

também nós

para algo lhe somos necessários.

2 de jun. de 2021

Confianças :: Juan Guelman


senta-se à mesa e escreve
“com este poema não tomarás o poder” diz
“com estes versos não farás a revolução” diz
“nem com milhares de versos farás a revolução” diz

e mais: esses versos não vão servir para que
peões professores lenhadores vivam melhor
comam melhor ou ele mesmo coma viva melhor
nem para apaixoná-la servirá

não ganhará dinheiro com eles
não entrará no cinema grátis com eles
não lhe darão roupa por eles
não conseguirá tabaco ou vinho por eles

nem papagaios nem cachecóis nem barcos
nem touros nem guarda-chuvas conseguirá por eles
se contar com eles a chuva o molhará
não alcançará perdão ou graça por eles

“com este poema não tomarás o poder” diz
“com estes versos não farás a revolução” diz
“nem com milhares de versos farás a revolução” diz
Senta-se à mesa e escreve