26 de set. de 2022

Discurso na seção de achados e perdidos :: Wislawa Szymborska

 


Fernand Leger


Perdi algumas deusas no caminho do sul ao norte,

e também muitos deuses no caminho do oriente ao ocidente.

Extinguiram-se para sempre umas estrelas, abra-se o céu.

Uma ilha, depois outra mergulhou no mar.

Nem sei direito onde deixei minhas garras,

quem veste meu traje de pelo, quem habita minha casca.

Morreram meus irmãos quando rastejei para a terra,

e somente certo ossinho celebra em mim este aniversário.

Eu saía da minha pele, desbaratava vértebras e pernas,

perdia a cabeça muitas e muitas vezes.

Faz muito que fechei meu terceiro olho para isso tudo.

Lavei as barbatanas, encolhi os galhos.


Dividiu-se, desapareceu, aos quatro ventos se espalhou.

Surpreende-me quão pouco de mim ficou:

uma pessoa singular, na espécie humana de passagem,

que ainda ontem perdeu somente a sombrinha no trem.



 In:_____. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Eric Carrazedo :: Arte

 







12 de set. de 2022

AUSÊNCIA :: MARÍA EUGENIA RAMOS (Tegucigalpa, Honduras, 26 de noviembre de 1959)

Alguém se foi

e deixou todos os cadernos

abertos na página 21,

servidos  o café

e o feijão

na mesa,

quente

a casa por fazer,

o cão

esperando a comida,

uma hora marcada para o amor

colocada a secar na janela

e os vazios do guarda-roupa

o odor dos sonhos.

.................

Alguien se fue

y dejó todos los cuadernos

abiertos en la ágina 21,

servidos el café

y los frijoles

en la mesa,

caliente

la cama sin hacer,

el perro

esperando su comida,

una cita de amor

puesta a secar en la ventana

y en los vacíos del ropero

el olor de los sueños.

 Tradução de Antonio Miranda


5 de set. de 2022

Eucanaã Ferraz, "Acontecido"


Mary Jane Glauber

Como quem se banhasse
no mesmo rio
de águas repetidas,
outra vez era setembro
e o amor tão novo.
Iguais, teu hálito mascavo
e minha mão inquieta.
Novamente o quarto,
a praça vista da janela,
teu peito.
Depois eu era só – vê -
sob a chuva miúda daquele dia.

1 de set. de 2022

Pobres, verdadeiramente pobres :: Eduardo Galeano (1940-2015)

Pobres, verdadeiramente pobres, são os 

que não têm tempo para perder tempo

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm silêncio e nem podem comprá-lo.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que têm pernas que se esqueceram de andar, como as asas das galinhas, que se esqueceram de voar.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que comem lixo e pagam por ele como se fosse comida.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que têm o direito de respirar merda, como se fosse ar, sem pagar nada por ela.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm liberdade senão para escolher entre um e outro canal de televisão.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que vivem dramas passionais com as máquinas.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que sempre são muitos e sempre estão sós.

Pobres, verdadeiramente pobres, são os que não sabem que são pobres.

De pernas pro ar.  tradução Sergio Faraco. L&PM, 1998.


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...