19 de jun. de 2023

Sete Sapatos :: Mia Couto


Van Gogh 



 "Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei Sete Sapatos Sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico:

- Primeiro Sapato - A ideia de que os culpados são sempre os outros;

- Segundo Sapato - A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;

- Terceiro Sapato - O preconceito de que quem crítica é um inimigo;

- Quarto Sapato - A ideia de que mudar as palavras muda a realidade;

- Quinto Sapato - A vergonha de ser pobre e o culto das aparências;

- Sexto Sapato - A passividade perante a injustiça;

- Sétimo Sapato - A ideia de que, para sermos modernos, temos de imitar os outros.”


Mia Couto

Excerto da Oração de Sapiência na Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique, 7 de março de 2005

5 de jun. de 2023

O relógio :: Baudelaire

Os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.

Um dia um missionário, passeando pelos subúrbios de Nanquim, percebeu que tinha esquecido seu relógio e perguntou as horas a um menino.

O garoto do Império Celeste, inicialmente, hesitou depois, reconsiderando, respondeu: “Vou lhe dizer.” E desapareceu. Poucos instantes depois voltou trazendo no colo um grande gato e olhando, como se costuma dizer, no branco dos olhos, afirmou sem hesitar: “Não é ainda meio-dia.” O que era verdade.

Por mim, se me inclinar para a bela Felina, assim tão bem chamada, que é, ao mesmo tempo a honra de seu sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, quer seja noite, quer seja dia, em plena luz ou na sombra opaca, no fundo de seus olhos adoráveis, vejo sempre a hora distintamente, sempre a mesma, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões, nem de minutos, nem de segundos — uma hora imóvel que não é marcada no mostrador dos relógios e, entretanto, leve como um suspiro, rápida como uma olhadela.

E se algum importuno vier me perturbar enquanto meu olhar repousa sobre esse delicioso mostrador, se qualquer gênio desonesto e intolerante, qualquer demônio do contratempo vier me dizer: “O que olhas tu com tanto cuidado? O que procuras nos olhos desse ser? Vês a hora, pródigo e mortal preguiçoso? , eu responderia, sem hesitar: Sim, eu vejo a hora: a Eternidade.”

Não é, madame, que aqui tendes um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático como vós mesma? Na verdade tive tanto prazer em bordar essa pretensiosa galanteria que não vou pedir nada em troca.