Chega um dia em que deixamos de crer. E aquele modo antes fervoroso de existir se esvai, pouco a pouco. Sei lá, bate um vento e já não chegamos ao final das orações iniciadas, as preces perdem o tônus do clamor de antes, os anjos vão lixando as unhas e, a um canto, desconfiam. Estamos, distraídos ou preguiçosos, assim, desprovidos de amém.
Mas não é que estejamos vazios. A coisa não vai mal, até ao contrário. O divino maravilhoso vai se espraiando de outros modos, delicadezas vão sendo descobertas no real, naquele, o famoso Deus das pequenas coisas, talvez seja isso. Ou quem sabe seja só cansaço mesmo, o que é uma coisa justa. Cansaço é cansaço, não pede explicação.
Ao menos comigo, em verdade, fui trocando os grandes cerimoniais sagrados por pequenos ritos diários, bobos até, gestos que passei a devotar sentido litúrgico, embora pagão. Coisas como coar um café, aguar uma planta, ler um poema bem agnóstica e solenemente, coisas que encerram no gesto o seu sentido puro, como se estivéssemos louvando uma lagartixa no teto, um passarinho que nos visitou no basculante.
Desobrigadas, as coisas perdem o peso. E a anestesia que tomou conta de nós arrefece e a gente reconhece a beleza de sua simplicidade.
Percebi com o tempo que, se somos livres de verdade, um silêncio reflexivo vai aos poucos se apoderando de nós, e mansamente nos convida, como gays do armário, a sair do oratório. E aí, curiosos e sem uma reza só, desautomatizados, abrimos livros de várias outras religiões, não para segui-las, mas para ampliar nossas formas de encantamento.
Nessa hora, geralmente num fim de tarde, sem nos darmos conta, no vão que passa ligeiro entre duas possíveis verdades muito sinceras, vislumbramos, presentificamos a magia, de se estar sendo, aqui e agora, apenas isso, o que somos
Nesse instante cai a grande ficha das maravilhosidades, e vem a sincera percepção de que estamos mesmo nos aprontando para uma festa, ou para um encontro muito especial e íntimo: a vida.
Com quem nos encontraremos depois? Não faço a menor ideia e duvido sinceramente que alguém tenha essa resposta, na qual podemos incluir desde o Grande Vazio dos Céticos até Muhathef Ghama, o imponente Deus que inventei agora mesmo, batucando a esmo, no meu celular. Mas já há algum tempo sinto em mim de saber sinceramente que nada disso me importa mais.
O que posso garantir é que tudo já está se dando, alô!, aqui, vejam!, no plano das sutilezas, esse mistério que, talvez, por teimosos ou reticentes, alguns de nós se recusam a chamar de Deus. Deus? que Deus?
Na impossibilidade de defini-Lo, só digo que estamos o tempo todo entoando hinos de louvor a Ele. Naqueles pequenos gestos diários a que me referi, lavar as mãos demoradamente, fazer um pão, limpar um aposento com capricho, sorrir para o movimento das formigas ou pendurar as roupas no varal, como sementes na terra à espera do grande sol, essa entidade, esse milagre, tão evidente, por exemplo.