29 de out. de 2024

Amar :: Mar Becker (Passo Fundo (RS)

amar o homem que tu és

amar o homem que tu és apesar do homem

amar sabendo que um homem pode se perder no amor – mas não uma mulher

nunca uma mulher

amar-te, meu amor

mas sem esquecer que a mulher de nós dois sou eu

.

eu não posso me esquecer das tantas outras

não posso esquecer eva

não posso esquecer agar no deserto com um bebêno colo

as centenas de caminhantes que vêm e vão por são paulo, não posso esquecê-las

as manhãs em que as vejo na estação do metrô, não raramente

puxando ou sendo puxadas – nunca sei dizer

pela mão de alguma criança

.

(porque os tempos mudam, mas as mulheres permanecem as mesmas

porque são ainda todas aquela mesma moça no deserto


aqueles mesmos olhos áridos que no entanto terminam o dia

querendo chorar um rio)

.

meu amor, somos tão sozinhas

não posso te amar sem ressalvas

sem lembrar o tempo todo que no fundo só temos umas às outras

ninguém mais

ni una menos


não esquecerei joana, queimada em praça pública

a beata lindalva

a virgem maria teresa goretti


não devo esquecer quantos litros de sangue uma mulher deve perder

para que cesse o pulso

e assim sem pulso possa finalmente ser considerada santa pela nossa santa igreja


tu falas da tua paixão por aves

eu também gosto de observá-las

há noites em que fico mais de hora sentada à soleira da porta, nos fundos de casa

olho o copado da jabuticabeira

a roupa no varal


muitas de nós ainda passam noites em claro pelas mulheres de salém

sou uma delas


sei que é preciso cuidar para que corpos inteiros não sejam comidos da nossa memória


se vierem graúnas, em bandos


e arrancarem a bicadas os fios do seu cabelo, para fazerem ninhos


se vierem beija-flores e furarem seus olhos, para beberem do rio


se quiserem levar também os cílios, os pelos do sexo, até lascas de unha – que levem


mas é preciso cuidar para que pelo menos uma parte do corpo de toda mulher morta reste intacta

o coração


o projeto de libélula que ardeu em algum dos seus gestos


o nome


o silêncio

.

a mim não cabe amar inadvertidamente


não posso esquecer as últimas horas de eloá


o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018


uma mulher a cada duas horas no brasil


seis mulheres a cada hora no mundo


não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no laço – como um animal


não esquecerei nina, que não esquecerá bruna


ambas se erguendo da mesma noite


não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada


não esquecerei minha irmã

minha mãe

minha avó, morta com um tiro no peito

.


tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais


eu te amo mais, meu amor


porque tu me amas com amor apenas

mas eu tive que aprender a te amar com ódio


 

14 de out. de 2024

Transporta o céu para o chão – Crônica :: Stanislaw Ponte Preta


Era um mendigo seresteiro, um misto de coitado e boêmio, que bebeu um pouco mais e ficou alegre. Ora, a alegria de um mendigo resume-se num canto romântico misturado aos palavrões da revolta, único lenitivo para suas amarguras. Os mendigos, em geral, não dizem palavrão, porque vivem da caridade pública. Mas este, de Salvador, Cidade do São Salvador, Bahia, tinha bebido umas e outras, talvez com outros humildes como ele, no cais dos saveiros, talvez numa tendinha da beira da praia. Isto não ficou esclarecido.

Sabia-se apenas que era um mendigo que — de repente — virou seresteiro e saiu cantando pelas ruas do Salvador, subindo e descendo suas ladeiras, momentaneamente alegre:

— “A Deusa/ da minha rua/ tem os olhos onde a lua costuma se embriagar” — cantava ele.

Depois parava, meditava sobre o que cantara, sorria e dizia seu sonoro e honesto palavrão:

— Quem costuma se embriagar sou eu, ora… – e arrematava com o palavrão. E lá ia cantando: — “Nos seus olhos eu suponho que o sol/ num doirado sonho/ vai claridade buscar.”

Cantando. O mendigo chegou a uma praça e parou encantado em frente a uma casa. Era uma casa muito grande, parecia um palácio e todo bêbado é um rei. Ele deve ter imaginado uma seresta para sua rainha e cantou:

— “Na rua/ uma poça d’água/ espelho da minha mágoa/ transporta o céu para o chão.”

Outra vez sorriu e outra vez praguejou seus palavrões. Foi então que um homem, vivendo ali seus dias e suas noites, isolado das misérias do mundo, sem mais um resto de temperança, de compreensão, achou que o mendigo estava lhe faltando com o respeito e chamou a polícia.

Pombas! A polícia. Esta mesmo é que não ia compreender nunca o sonho do mendigo-rei. Chegou e tentou agarrá-lo à força.

– Assim não — gritou o intrépido monarca. — Assim não.

Mas o policial insistiu e deu-lhe um tranco. O rei foi magnífico na sua dignidade, esfregando um bofetão certeiro e merecido nas fuças do policial. Um companheiro do esbofeteado sacou da arma e fez fogo. Morreu o rei, morreu o seresteiro, morreu o mendigo.

Caiu desfalecido na calçada, veio-lhe uma estranha impressão e ele morreu: “Na rua/ uma poça d’água/ […]/ transporta o céu para o chão” – cantara ele ainda há pouco. Mas desta vez não. A poça era de sangue.

 

11 de out. de 2024

UM HOMEM E UMA PORTA :: K. Satchidanandan ( india, 1946)

Um homem carrega uma porta

pela rua fora.

Procura a sua casa.


Ele sonhou

com a mulher, filhos e amigos,

a entrarem através daquela porta.

Agora vê o mundo todo,

a entrar através da porta

da sua casa ainda por construir:

homens, veículos, árvores,

animais, pássaros, tudo.


E a porta, o seu sonho

erguendo-se acima da terra,

anseia ser a porta dourada do paraíso.

Imagina nuvens, arco-íris,

demónios, fadas e santos

passando através dela.


Mas é o senhor do inferno

quem guarda a porta.

E agora deseja apenas ser uma árvore

cheia de folhas,

ondulando na brisa,

para providenciar alguma sombra,

ao seu carregador sem abrigo.


Um homem carrega uma porta

ao longo da rua.

Um homem e uma estrela.

4 de out. de 2024

Um Cão, Apenas :: Cecília Meireles

      Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...

        Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

        Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.

        Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.

        Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.

        Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

Inéditos – crônicas. Rio de Janeiro, Bloch, 1967. p. 19-20

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...