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29 de out. de 2019

As árvores e os livros :: Jorge Sousa Braga


As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras. 
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras*. 


in Herbário, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999
*sardineira: gerânios 

26 de jun. de 2015

Quem somos nós :: Italo Calvino

Zinaida Serebriakova
(...) quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. 


in: As seis propostas para o próximo milênio.  Companhia das Letras, 1990. 

12 de mai. de 2015

Passeio pelas estantes da biblioteca :: Jostein Gaarder e Klaus Hagerup

Jacek Yerka
Passeio pelas estantes da biblioteca. Os livros me dão as costas. Não para me rejeitar, como as pessoas: são convidativos, querendo apresentar-se a mim. Metros e mais metros de livros que nunca poderei ler. E sei: o que aqui se oferece é a vida, são complementos à minha própria vida que esperam ser postos em uso. Mas os dias passam rápido e deixam para trás as possibilidades. Um único desses livros talvez bastasse para mudar completamente a minha vida. Quem sou eu agora? Quem eu seria então?

In: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken. Companhia das Letras, 2003. 

15 de jan. de 2014

AMOR-O INTERMINÁVEL APRENDIZADO de AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA


Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado. Se enganava. Se enganava porque o aprendizado de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é um interminável aprendizado. Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara. De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boêmio, largando marido e filhos. Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram. Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor. O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava. Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão. O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina. Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal. O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final. Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não. Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não. E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não. Absurdo. Como pode o amor não coincidir consigo mesmo? Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente. Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente. Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado. Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado. O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado. Optou por aceitar a sua ignorância. Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado. E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

12 de set. de 2013

O espírito das casas de Contardo Calligaris

NUMA MESMA tarde, assisti (com prazer) a duas estréias da sexta passada: uma história de horror, "Almas Reencarnadas", de Takashi Shimizu, e uma história de amor, "A Casa do Lago", de Alejandro Agresti.

Os dois filmes têm em comum um clima sobrenatural. No primeiro, um diretor de cinema filma a história de uma série de assassinatos que aconteceram num hotel 35 anos antes; com isso, o passado se desperta. No segundo, um homem e uma mulher se correspondem e se amam: eles estão vivendo em épocas diferentes (ele, em 2004; e ela, em 2006), mas na mesma casa.

Interessei-me pelos filmes porque gosto daquela tradição narrativa na qual o espaço concreto, em que os personagens vivem e circulam, é por sua vez uma personagem importante da história. No primeiro filme, o hotel (ou sua reconstrução no estúdio) parece impor a repetição do passado. No segundo, a casa do lago, na qual, em épocas diferentes, ambos os protagonistas escolhem viver, é a ponte entre eles, o lugar onde se abre uma brecha no tempo. Em geral, subestimamos o espaço concreto no qual vivemos. Não acreditamos que sentimentos, afetos e relações dependam também do cenário concreto de nossa vida.

Ora, os militantes do espírito new age adotaram a arte do feng shui para corrigir as energias negativas de casas e escritórios. Mas não é preciso disso para entender que o espaço no qual moramos nos determina e nos expressa. Que seja ou não escolhido por nós, ele diz qual é a convivência com os outros que desejamos ou que nos permitimos: banalmente, o tipo de mesa (não só seu tamanho) diz se queremos jantar em companhia ou cada um no seu canto, a disposição do sofá diz se preferimos conversar com os amigos ou parar na frente da televisão, e por aí vai. O mesmo vale para o espaço urbano: temos a vida pública que nossas cidades nos impõem. Quando, numa mudança, estamos apostando no futuro, sonhamos com uma casa e uma decoração desenhadas pelo próprio Walter Gropius, modernistas, limpas, funcionais, despojadas.

Tempo atrás, Ana Verônica Mautner, numa crônica do caderno Equilíbrio, da Folha, comentou a proliferação de caçambas pelas ruas de São Paulo: reformamos custosamente até os apartamentos que alugamos porque queremos fazer tábula rasa na hora de mudar de casa, queremos evitar que nossos novos caminhos sigam as passagens que foram desenhadas no chão pelos hábitos de quem lá morou antes da gente.

Uma vez instalados, esvaziamos as caixas de nosso passado e nos tornamos, aos poucos, Biedermeier e kitsch, enchendo o espaço de móveis que limitam as potencialidades da casa e de lembranças que nos forçam a continuar sendo quem sempre fomos (a foto do casamento dos avós, a coleção de pedras que nosso filho juntou no primário, um quadro horrendo que compramos na lua-de-mel). Um bom arquiteto ou decorador, ao visitar nossos aposentos, deveria poder descobrir as grandes linhas de nossa vida relacional: talvez ele pudesse até enxergar, atrás da vida que temos, a vida que desejaríamos ter.

Aviso: se seu parceiro ou sua parceira muda de repente a disposição dos móveis de casa, não é apenas de estética que se trata. Nas minhas gavetas tenho alguns romances inacabados. Um deles é a história de alguém que compra uma casa cujos antigos donos saíram fugindo, sem nem fazer as malas.

O comprador deixa tudo assim como está (a roupa espalhada, a forma oca dos corpos nas camas desfeitas, os pratos do almoço interrompido etc.) e se dedica a adivinhar cada detalhe da existência de seus predecessores. Claro, comecei esse romance logo após a morte de meus pais. Isso me leva de volta ao clima comum aos dois filmes: não sou muito fã do sobrenatural, mas confesso o seguinte.

Numa casa que já abandonei, em Brookline (EUA), eu tinha construído um quarto-biblioteca que evocava, descobri depois, a biblioteca da casa de minha infância. Um dia, Maria, a jovem mulher que nos ajudava a cuidar da casa (e que dizia ser dotada de poderes mediúnicos), anunciou: "Doutor, seu pai está na biblioteca". "Meu pai está morto", respondi. Fui com ela até a biblioteca.

"Ele está lá, sentado", apontou Maria. Eu não via nada e não acredito em espíritos, mas perguntei, sem brincadeira nenhuma: "Poderia falar com ele?". Maria: "Não, mas lhe garanto que ele está sorrindo, feliz".

23 de abr. de 2013

O ameaçado de Jorge Luis Borges

Leon Ferrari

É o amor. Terei de me esconder ou fugir.
Crescem as paredes de seu cárcere,
como em um sonho atroz.

A bela máscara mudou,
mas como sempre é a única.
De que me servirão meus talismãs:
o exercício das letras, a vaga erudição,
o aprendizado das palavras que usou
o vago norte para cantar seus mares e suas espadas,
a serena amizade, as galerias da biblioteca,
as coisas comuns, os hábitos,
o jovem amor de minha mãe,
a sombra militar de meus mortos,
a noite intemporal, o gosto do sonho?

Estar ou não é a medida do meu tempo.
O cântaro já se quebra sobre a fonte,
já se levanta o homem à voz da ave,
já escureceram os que olham pelas janelas,
mas a sombra não trouxe a paz.

É, eu sei, é o amor:
a ansiedade e o alívio de ouvir tua voz,
espera e a memória, o horror de viver o sucessivo.
É o amor com suas mitologias,
com suas pequenas magias inúteis.
Há uma esquina pela qual não me atrevo a passar.
Agora os exércitos me cercam, as hordas.
(este quarto é irreal; ela não o viu.)

O nome de uma mulher me delata.
Dói-me uma mulher por todo o corpo.

             ******************

Es el amor. Tendré que cultarme o que huir.
Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz.
La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre es la única.
¿De qué me servirán mis talismanes: el ejercicio de las letras,
la vaga erudición, el aprendizaje de las palabras que usó el áspero Norte para cantar sus mares y sus espadas,
la serena amistad, las galerías de la biblioteca, las cosas comunes,
los hábitos, el joven amor de mi madre, la sombra militar de mis muertos, la noche intemporal, el sabor del sueño?
Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo.
Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se
levanta a la voz del ave, ya se han oscurecido los que miran por las ventanas, pero la sombra no ha traído la paz.
Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, la espera y la memoria, el horror de vivir en lo sucesivo.
Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles.
Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar.
Ya los ejércitos me cercan, las hordas.
(Esta habitación es irreal; ella no la ha visto.)
El nombre de una mujer me delata.
Me duele una mujer en todo el cuerpo.

14 de nov. de 2012

Biblioteconomia de Mario de Andrade



O contato com os livros e manuscritos dessas idades que irreverentemente costumamos chamar de “passado”, será que nos deixa o ser mais antigo?... Parece. Positivamente não é a mesma coisa a gente ler Matias Aires* numa edição primeira ou numa reimpressão contemporânea. A transposição moderna conterá sempre a mesma substância, e mesmo nas raríssimas edições honestas, a substância estará enriquecida de comentários, correções, esclarecimentos. Mas o importante é que não são apenas os dados da verdade que um livro pode nos fornecer. Quem julgar assim, sabe ler pelo meio.

O livro não é apenas uma dádiva à compreensão; é, deve ser principalmente, um fenômeno de cultura. Quem lê indiferentemente um escrito numa edição do tempo ou noutra moderna, numa edição mal impressa ou noutra tipograficamente perfeita, num bom como num mau papel, esse é um egoísta, cortado em meio em sua humanidade. Lê porquê sabe ler, e apenas. O livro lido apenas para se saber o teor do escrito é sempre singularmente subversivo da humanidade que trazemos em nós. O fenômeno mais característico desse individualismo errado, a gente encontra nos estudantes que, na infinita maioria, são pervertidos pelos seus livros de estudo. Não que todos os livros escolares sejam ruins, os rapazes é que ainda não aprenderam a ler. Lêem para saber a verdade que está nos livros, e apenas. O resultado são essas almas imperialistas, tão freqüentes nos ginásios, vivendo em decretos desamorosos, incapazes de distinguir, comendo, dormindo, respirando afirmações. O estudante pernóstico, corrigindo os erros do pai!

Nas civilizações contemporâneas mais energicamente respeitosas do homem, as universidades, os livreiros, se esforçam para apresentar o livro, não apenas como um repositório de verdades, mas como um fenômeno duma totalidade muito mais fecunda que isso. Pela boniteza da impressão, pela generosidade do papel, pelo conselho encantador das gravuras, os bons livros modernos não querem nos obrigar apenas a saber a vida, mas a gostar dela porém.

Ora, já de muito, bem que venho matutando em que talvez a verdade menos deva ser um objeto de conhecimento, que de contemplação... Não será essa diferença fundamental que separa o encanto maravilhoso de Platão, da secura sem beijos de Aristóteles, no entanto bem mais verdadeiro?... Não será esse engano das nossas civilizações, que torna tão rasteiras, monetárias,dogmáticas,em oposição às grandes civilizações da Ásia, bem mais gostosas e subtis?

E cheguei como certo esforço adonde pressentia que desejava chegar: o livro antigo, o manuscrito original, pela sua venerabilidade, pelo esforço de acomodação à leitura, pela exigência permanente de controle do que diz, não nos deixa nunca na psicologia individualista de quem aprende, mas no êxtase amplíssimo, difuso, contagioso da contemplação. Ele nos reverte à nossa antiguidade.

Deixem que eu diga, mas nas civilizações novatas que nem as desta América, os seres tão profundamente imorais, no sentido em que a moral é uma exigência derivada aos poucos do ser tanto indivíduo como social. Não nos custa a nós, americanos, aceitar religiões, filosofias, e mesmo importar civilizações aparentemente complexas. O nosso dicionário vai de A para Z, direitinhamente. Tem F tem L e tem R: Fé, Lei, Rei. O que não nos é possível importar é a precedência orgânica dessa Fé, dessa Lei e desse Rei, nascidos de outras experiências. Nós existimos pouco, demasiado pouco. Nós existimos em desordem É que nos falta antiguidade, nos falta tradição inconsciente, nos falta essa experiência por assim dizer fisológica da nossa moralidade que, só por si, torna a palavra “passado” duma incompetência larvar.

Isso nem o ótimo livro moderno conseguirá nos fornecer. O livro antigo é moral, com a subtil prevalência de não ser de uma moral ensinada (que é sempre pelo menos duvidosa) mas uma moral vivida. É um banho inconsciente de antiguidade. E si na mão do bibliófilo o livro mais antigo é uma volúpia incomparável, estou que devemos arrancá-lo dessas mãos pecaminosas e bota-lo nas mãos rápidas do moço. Convém tomar os moços mais lentos, e iniciar no Brasil o combate às velocidades do espírito. Que abundância de meninos-prodígios transfere a vida agora da beca difícil dos clérigos pro quépi chamariz dos generais... Vivo meio sufocando.

Eu desconfio que ninguém achará razão nestas palavras, quando o que me intitula é a Biblioteconomia. Mas para mim foram os pensamentos sossegados que pensei e quis dizer. Para mim, que envelheço rápido, o pensamento como a vista já não vão preciosamente perdendo aquele dom de precisão categórica, que define as idéias como as coisas nos seus limites curtos. De-fato a Biblioteconomia, é dentre as artes aplicadas, uma das mais afirmativas. Diante desse mundo misteriosíssimo que é o livro, a Biblioteconomia parece desamar a contemplação, pois categoriza a ficha. É engano quase de analfabeto imaginar tal desamor; e não foi senão por um velho hábito biblioteconômico que, faz pouco, me fichei na categoria dos envelhecidos, o que posso jurar ser pelo menos uma precipitação.

Isso é a grandeza admirável da Biblioteconomia! Ela torna perfeitamente acháveis os livros como os seres, e alimpa a escolha dos estudiosos de toda suja confusão. Este o seu mérito grave e primeiro. Fichando o livro, isto é, escolhendo em seu mistério confuso uma verdade, pouco importa qual, que o define, a Biblioteconomia torna a verdade utilizável, quero dizer: não o objeto definitivo do conhecimento, pois que houve arbitrariedade, mas um valor humano, fecundo e caridoso de contemplação. E pelo próprio hábito de fichar, de examinar o livro em todos os seus aspectos e desdobrá-lo em todas as suas ofertas, a Biblioteconomia rallenta os seres e acode aos perigos do tempo, tornando para nós completo o livro, derrubando os quépis e escovando as becas. (original de 1937)

*( São Paulo, 27 de março de 17051763)
in: Os filhos da Candinha, 1943. Martins: INL : Ministerio da Educação, 1976.

5 de ago. de 2012

Quem somos nós de Ítalo Calvino

imagem: Hyuro 
Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilo, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. 
Ítalo Calvino In: Seis propostas para o próximo milênio.

13 de jun. de 2012

Liberdade de Fernando Pessoa


Matizes


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira 
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca....


23 de dez. de 2011

"O presente é uma linha ténue" de José Saramago

José Saramago: Quando cito aquela frase de Croce que diz que "toda a História é História contemporânea", quero dizer, à minha maneira, que tudo o que sucedeu está a suceder, que todos os mortos estão vivos, que não somos nada sem eles. O presente é uma linha ténue que se desloca ininterruptamente para o que chamamos futuro, ou talvez um "eixo" móvel sobre o qual o tempo vai rolando, segundo a segundo. Ou página a página.


Entrevistador: Se, como escreve, "contra a morte não se pode fazer nada", por que é que "um Cemitério é como uma espécie de biblioteca onde o lugar dos livros se encontrasse ocupado por pessoas enterradas"?


José Saramago: É certo que, objectivamente, nada podemos contra a morte. Mas a memória, a memória "sobrevivente", faz pairar, sobre a morte, a vida. Muitas vezes se chamou a uma biblioteca não consultada cemitério de livros. É a primeira vez, suponho, que alguém teve a ideia de chamar a um cemitério biblioteca de pessoas. Tudo está em consultar ou não a biblioteca, qualquer que ela seja. A memória, quero dizer.

In: In PÚBLICO de 25 de Outubro de 1997 "O presente é uma linha ténue" Por Carlos Câmara Leme