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14 de nov. de 2012

Biblioteconomia de Mario de Andrade



O contato com os livros e manuscritos dessas idades que irreverentemente costumamos chamar de “passado”, será que nos deixa o ser mais antigo?... Parece. Positivamente não é a mesma coisa a gente ler Matias Aires* numa edição primeira ou numa reimpressão contemporânea. A transposição moderna conterá sempre a mesma substância, e mesmo nas raríssimas edições honestas, a substância estará enriquecida de comentários, correções, esclarecimentos. Mas o importante é que não são apenas os dados da verdade que um livro pode nos fornecer. Quem julgar assim, sabe ler pelo meio.

O livro não é apenas uma dádiva à compreensão; é, deve ser principalmente, um fenômeno de cultura. Quem lê indiferentemente um escrito numa edição do tempo ou noutra moderna, numa edição mal impressa ou noutra tipograficamente perfeita, num bom como num mau papel, esse é um egoísta, cortado em meio em sua humanidade. Lê porquê sabe ler, e apenas. O livro lido apenas para se saber o teor do escrito é sempre singularmente subversivo da humanidade que trazemos em nós. O fenômeno mais característico desse individualismo errado, a gente encontra nos estudantes que, na infinita maioria, são pervertidos pelos seus livros de estudo. Não que todos os livros escolares sejam ruins, os rapazes é que ainda não aprenderam a ler. Lêem para saber a verdade que está nos livros, e apenas. O resultado são essas almas imperialistas, tão freqüentes nos ginásios, vivendo em decretos desamorosos, incapazes de distinguir, comendo, dormindo, respirando afirmações. O estudante pernóstico, corrigindo os erros do pai!

Nas civilizações contemporâneas mais energicamente respeitosas do homem, as universidades, os livreiros, se esforçam para apresentar o livro, não apenas como um repositório de verdades, mas como um fenômeno duma totalidade muito mais fecunda que isso. Pela boniteza da impressão, pela generosidade do papel, pelo conselho encantador das gravuras, os bons livros modernos não querem nos obrigar apenas a saber a vida, mas a gostar dela porém.

Ora, já de muito, bem que venho matutando em que talvez a verdade menos deva ser um objeto de conhecimento, que de contemplação... Não será essa diferença fundamental que separa o encanto maravilhoso de Platão, da secura sem beijos de Aristóteles, no entanto bem mais verdadeiro?... Não será esse engano das nossas civilizações, que torna tão rasteiras, monetárias,dogmáticas,em oposição às grandes civilizações da Ásia, bem mais gostosas e subtis?

E cheguei como certo esforço adonde pressentia que desejava chegar: o livro antigo, o manuscrito original, pela sua venerabilidade, pelo esforço de acomodação à leitura, pela exigência permanente de controle do que diz, não nos deixa nunca na psicologia individualista de quem aprende, mas no êxtase amplíssimo, difuso, contagioso da contemplação. Ele nos reverte à nossa antiguidade.

Deixem que eu diga, mas nas civilizações novatas que nem as desta América, os seres tão profundamente imorais, no sentido em que a moral é uma exigência derivada aos poucos do ser tanto indivíduo como social. Não nos custa a nós, americanos, aceitar religiões, filosofias, e mesmo importar civilizações aparentemente complexas. O nosso dicionário vai de A para Z, direitinhamente. Tem F tem L e tem R: Fé, Lei, Rei. O que não nos é possível importar é a precedência orgânica dessa Fé, dessa Lei e desse Rei, nascidos de outras experiências. Nós existimos pouco, demasiado pouco. Nós existimos em desordem É que nos falta antiguidade, nos falta tradição inconsciente, nos falta essa experiência por assim dizer fisológica da nossa moralidade que, só por si, torna a palavra “passado” duma incompetência larvar.

Isso nem o ótimo livro moderno conseguirá nos fornecer. O livro antigo é moral, com a subtil prevalência de não ser de uma moral ensinada (que é sempre pelo menos duvidosa) mas uma moral vivida. É um banho inconsciente de antiguidade. E si na mão do bibliófilo o livro mais antigo é uma volúpia incomparável, estou que devemos arrancá-lo dessas mãos pecaminosas e bota-lo nas mãos rápidas do moço. Convém tomar os moços mais lentos, e iniciar no Brasil o combate às velocidades do espírito. Que abundância de meninos-prodígios transfere a vida agora da beca difícil dos clérigos pro quépi chamariz dos generais... Vivo meio sufocando.

Eu desconfio que ninguém achará razão nestas palavras, quando o que me intitula é a Biblioteconomia. Mas para mim foram os pensamentos sossegados que pensei e quis dizer. Para mim, que envelheço rápido, o pensamento como a vista já não vão preciosamente perdendo aquele dom de precisão categórica, que define as idéias como as coisas nos seus limites curtos. De-fato a Biblioteconomia, é dentre as artes aplicadas, uma das mais afirmativas. Diante desse mundo misteriosíssimo que é o livro, a Biblioteconomia parece desamar a contemplação, pois categoriza a ficha. É engano quase de analfabeto imaginar tal desamor; e não foi senão por um velho hábito biblioteconômico que, faz pouco, me fichei na categoria dos envelhecidos, o que posso jurar ser pelo menos uma precipitação.

Isso é a grandeza admirável da Biblioteconomia! Ela torna perfeitamente acháveis os livros como os seres, e alimpa a escolha dos estudiosos de toda suja confusão. Este o seu mérito grave e primeiro. Fichando o livro, isto é, escolhendo em seu mistério confuso uma verdade, pouco importa qual, que o define, a Biblioteconomia torna a verdade utilizável, quero dizer: não o objeto definitivo do conhecimento, pois que houve arbitrariedade, mas um valor humano, fecundo e caridoso de contemplação. E pelo próprio hábito de fichar, de examinar o livro em todos os seus aspectos e desdobrá-lo em todas as suas ofertas, a Biblioteconomia rallenta os seres e acode aos perigos do tempo, tornando para nós completo o livro, derrubando os quépis e escovando as becas. (original de 1937)

*( São Paulo, 27 de março de 17051763)
in: Os filhos da Candinha, 1943. Martins: INL : Ministerio da Educação, 1976.