Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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11 de abr. de 2012
Efeito jacaré de Fabrício Carpinejar
Toda relação tem um efeito Jacaré. Ele engole pessoas ainda vivas. Tritura amores. Cuidado.
Fui procurar uma meia na lavanderia de minha namorada. Achei um saco de brinquedos. Num canto. Mexi com o tato: hélices, bonecas, corda de pular, quebra-cabeça.
- O que é isso, Cínthya?
- O quê?
- Esse saco de brinquedos aqui atrás?
- Peças do meu consultório antigo, quando atendia crianças.
Observei o estado de abandono das peças, exalando a condição de trastes, empoeirados e sem uso. Retirei todos para espiar se localizava algum fetiche de minha infância. Virei a lona no chão e já não me importava que estava descalço. Do pântano, saltou um jacaré. Bonito, de borracha, do tamanho de uma tábua de passar.
Pulei de faceirice como quem reencontra um par de luvas. Combina com a minha estante, pensei. Vou colocar na ala infantil, chamará atenção.
Naquele momento, eu me fardei de pet shop. Levei o bichinho para lavar. Retirei as manchas, a sujeira, esfreguei suas escamas, ainda dei ao luxo de aquecê-lo com o secador.
O jacaré rejuvenesceu, já era um filhote de jacaré. Lustrado. Cintilante.
Na sala, comuniquei minha decisão para Cínthya:
- Peguei o Jacaré para mim.
- Que jacaré?
- Este! (retirei das costas como um buquê). Arrumei e aprontei para sair comigo. Vou levar para meu escritório.
- Nãooooooooooooooooo
A negativa me magoou. Não absorvi o tranco. Imaginei que estivesse troçando, fazendo charme. Mas ela lançou tentáculos na minha direção e puxou o jacaré para perto dos seus seios. Com a violência de uma mãe recente.
Tentei argumentar:
- Largou o bicho, imundo. Não duvido que permaneceu parado naquele lugar há três anos. E agora banca a interessada?
- Não importa, é meu!
É muito egoísmo, deduzi. E comecei a enumerar as minhas tentativas frustradas de levar algo de seu apartamento. Reclamei de sua possessividade, da ausência absoluta de gentileza. Demonizei a namorada, faltou somente colocar a bata negra da Inquisição e armar o fogo.
Bati a porta e não me despedi. Desci lento as escadas, aguardando que ela se arrependesse. Sempre parto devagar, esperando um pedido de desculpa sôfrego pelo corredor, dando chance para que ela me alcance pelo grito.
Não correu atrás de mim, muito menos caminhou. Não era isso que queria mesmo. A verdade é que não desejamos que a namorada corra para nos buscar, desejamos que ela rasteje.
Perdi o jacaré. Aliás, não perdi o jacaré, não era meu, não ganhei o jacaré simplesmente.
Por pouco, não fui engolido pela avareza. O orgulho é a mais grave avareza.
Descobri que o egoísta era eu. Eu é que entrei em seu espaço, mexi em suas lembranças, retirei um objeto qualquer, sem perguntar que valor tinha para ela, quem havia oferecido, sua história. Vá lá que seja lembrança de um amigo que morreu ou um presente de uma amiga que não vê mais.
É a mania de desfalcar quem amamos pelo ideal de despojamento. Há uma concepção equivocada no relacionamento de que não deve persistir limites na entrega. Com limites, acusamos que não é mais amor.
Aproveitando a culpa, os amantes são os piores trambiqueiros, esquecem o valor dos detalhes, tiram vantagem em cada gesto.
É o mesmo que entrar no quarto do filho e colocar, de modo arbitrário, roupas fora. Entregaremos justo sua camisa predileta ou a mais confortável para a Campanha do Agasalho. É o mesmo que promover uma limpeza nas gavetas da criança e eliminar tampinhas de garrafa, confiando que aquilo é um lixo imperdoável, sem adivinhar que serviam para sinalizar a pista de pouso dos aviões de guerra.
Cada peça da casa é contaminada pela imaginação do seu dono, revestida da memória afetiva de seu uso. Não seria conservada se não fosse importante.
Não desfrutei de nenhuma educação, poderia ao menos questionar qual o nome do jacaré. Recolhi o animal com a pretensão de que cuidaria melhor dele. Deixei de cuidar de minha namorada.
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