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30 de jun. de 2016

Começo de Rui Pires Cabral

Vejo-te um pouco como se já não houvesse 
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?
Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.


15 de dez. de 2014

Soneto do amigo de Vinicius de Moraes



Enfim, depois de tanto erro passado 
Tantas retaliações, tanto perigo 
Eis que ressurge noutro o velho amigo 
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado 
Com olhos que contêm o olhar antigo 
Sempre comigo um pouco atribulado 
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano 
Sabendo se mover e comover 
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

27 de nov. de 2014

Jorge Luis Borges: "El sueño"

Rene Magritte

Se o sonho fora (como dizem) uma
trégua, o límpido repouso da mente,
por que, se te despertam bruscamente,
sentes que te furtaram grã fortuna?

Por que é tão triste madrugar? A hora
nos despoja de um dom inconcebível,
tão íntimo que só é traduzível
numa modorra que a vigília doura

de sonhos, que bem podem ser reflexos
seccionados dos tesouros complexos
da sombra, de orbe atemporal sem nome

e que o dia em seus espelhos consome.
Quem poderá ser à noite no escuro
sonho, daquele lado do seu muro?

Tradução de Adriano Nunes
........................

Si el sueño fuera (como dicen) una
tregua, un puro reposo de la mente,
¿por qué, si te despiertan bruscamente,
sientes que te han robado una fortuna?

¿Por qué es tan triste madrugar? La hora
nos despoja de un don inconcebible,
tan íntimo que sólo es traducible
en un sopor que la vigilia dora

de sueños, que bien pueden ser reflejos
truncos de los tesoros de la sombra,
de un orbe intemporal que no se nombra

y que el día deforma en sus espejos.
¿Quién serás esta noche en el oscuro
sueño, del otro lado de su muro?


In: "Obra Poética". Buenos Aires: Enecé Editores, 2007, página 255.

22 de set. de 2014

O PAÍS DAS MARAVILHAS :: Antonio Cícero

Jesus Rafael Soto, 2005

Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.


19 de set. de 2014

SCHWEIZER HOF HOTEL :: Manuel António Pina

 Maria Helena Vieira da Silva, 1981

Já aqui estive, já fiz esta viagem,
e estive neste bar neste momento
e escrevi isto diante deste espelho
e da minha imagem diante da minha imagem.

Não mudou nada, nem eu próprio; a mão
escreve os mesmos versos no papel obscuro.
Que aconteceu então fora de tudo?
De que esquecimento se lembra o coração?

Algum passado, alguma ausência,
se passam talvez a meu lado,
talvez tudo exista exilado
de alguma verdadeira existência.

E eu, os versos, o bar, o espelho,
sejamos só imagens noutro espelho
diante de algum Deus em cujo lasso
olhar se fundem outro e mesmo, tempo e espaço.


(n. 1943) Poesia Reunida. Assírio & Alvim, 2001

2 de set. de 2014

O POETA AO ESPELHO, BARBEANDO-SE :: José Paulo Paes

Paul Ward

o rito
do dia
o ríctus
do dia
o risco
do dia

EU?
UE?

olho
por olho
dente
por dente
ruga
por ruga

EU?
UE?

o fio
da barba
o fio
da navalha
a vida
por um fio

EU?
UE?

mas a barba
feita
a máscara
refeita
mais um dia
aceita

EU
EU

do livro: Poesia completa.  Companhia das Letras.

5 de jun. de 2014

Espelho :: Sylvia Plath

Sylvia Plath 

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato 
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

Tradução de Vinicius Dantas

21 de mar. de 2014

Azul Vazio :: Arnaldo Antunes

Ouve, só se ouve ouvir
O rio só se ouve quem
De longe lá de onde vem
O rio daqui se ouve bem
De dentro ecoa a água
Que deságua no azul vazio

Serpente, serpenteia o rio
Percorre corre em minha veia
A correnteza o coração bombeia
O rio navega e lava
O pensamento leva
O corpo todo como um navio

Um rio que não tem beira
Por um fio abismo cachoeira
Onde deságua se não tem mar
E não tem margem só o olho d'água
Brota espelho molha o azul do céu

Ouve, só se ouve ouvir
O rio só se ouve quem
De longe lá de onde vem
O rio daqui se ouve bem
De dentro ecoa a água
Que deságua no azul vazio

Serpente, serpenteia o rio
Percorre corre em minha veia
A correnteza o coração bombeia
O rio navega e lava
O pensamento leva
O corpo todo como um navio

Um rio que não tem beira
Por um fio abismo cachoeira
Onde deságua se não tem mar
E não tem margem só o olho d'água
Brota espelho molha o azul do céu

O olho d'água
Brota espelho molha o azul do céu

http://letras.mus.br/arnaldo-antunes/azul-vazio/

9 de out. de 2013

A idade me cai bem :: Andréa Beheregaray

 Berthe Morisot1889
Uma amiga ao ver essa foto* escreveu que, a idade me cai bem.
Lhe respondi que isso é bom, já que com a idade muita coisa cai também!
E pensativa fiquei, aos 33, ainda não me apavorei.
Se existe a mulher moranguinho, e também a melância.
E eu o que seria?
Talvez a mulher bergamota, com a pele cheia de relevos.
Não olho no espelho, e com isso pouca coisa percebo.
Mas sei que também poderia
ser chamada de a mulher braile.
1000 furinhos a compor curvas,
Celulite também é cultura,
basta que entendas a escrita dos cegos.
O que será que contam os textos da minha pele?
Mas bom mesmo é não saber.
Evitar biquinis, se esconder.
Porque se a idade me cai bem,
o resto tem caido também!

* não se trata da imagem de Berthe Morison

6 de out. de 2013

Um ponto de vista de Bernardo Carvalho

magritte
"Nunca vi ninguém tão só. (...) Numa das vezes em que me falou das suas viagens pelo mundo, perguntei aonde queria chegar e ele me disse que estava em busca de um ponto de vista. Eu lhe perguntei: "Para olhar o quê?". Ele respondeu: "Um ponto de vista em que eu já não esteja no campo de visão". Eu poderia ter dito a ele, mas não tive coragem, que não precisava procurar, que se fosse por isso não precisava ter ido tão longe. Porque ele nunca estaria no seu próprio campo de visão, desde que evite os espelhos. Às vezes me dava a impressão de que, a despeito de ter visto muitas coisas, não via o óbvio, e por isso acreditava que os outros não o vissem, que pudessem se esconder. O que eu vi, nunca falei. Fiquei à sua espera".

in: Nove noites. Companhia das Letras, 2006. p. 100

31 de mai. de 2013

ESPELHO DE DUAS FACES de ANTÓNIO GEDEÃO


Ajuda-me a esquecer as tuas faltas
e a ignorar os teus crimes
para melhor te amar.
Dá-me a febre em que te exaltas
e o que nos olhos exprimes
quando não sabes falar.

Espelho de duas faces, plana e curva:
és, e não és.
Imagem dupla, ora límpida, ora turva,
numa te afirmas, noutra te negas, em ambas te crês.

Queria sentir-te em outros sentidos.
Queria ver-te sem olhos e ouvir-te sem ouvidos.
E queria as tuas mãos numa aldeia fraterna.
Essas mãos que ainda ontem, de manhã, aturdidas,
com duas varas secas e folhas ressequidas
arrepiaram de luz as sombras da caverna. 

in "POESIA COMPLETA" (Ed. João Sá da Costa, 1996)

9 de dez. de 2012

Espelho de Clarice Lispector nascida Haia Pinkhasovna Lispector (Tchetchelnik, Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977)

foto:  Stanislav Odyagailo
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. Tire-se sua moldura ou a linha de seu cortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - esse alguém percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei da minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, tal ausência de si mesmo, que a imagem não marca. Como prêmio essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito.
In: Água viva

7 de nov. de 2012

Mulheres de Débora Siqueira Bueno

Burne Jones

Muitas mulheres juntas 

fazem alarido, 

segredos e risos 

são compartilhados, 

cochichando ao ouvido 

todos os detalhes. 

Juntas, mulheres contam 

amores vividos, 

feridas sofridas, 

pequenos pecados, 

casos engraçados. 

Tanta autonomia 

e tanto falar, 

parecem bastar-se, 

muito satisfeitas. 


Quando silenciam 

e vem a acalmia, 

surge um vazio – 

não é de tristeza, 

nem do que é perdido 

no ir e vir da vida. 

Quando aquietam, 

percebem a falta 

de deitar no ombro 

de um companheiro 

que só com seus braços 

lhes vista o corpo. 


É então que surge 

o recolhimento – 

se voltam pra dentro, 

buscam aquele homem 

que deita ao seu lado, 

ou vive encantado 

em recanto oculto 

de sua memória. 


A chave 

da porta secreta 

que leva ao espelho 

que as fez mulheres 

(quem por uma vez 

nele se enxergou, 

muito bem sabe) 

nunca é perdida.


17 de jul. de 2012

Teus olhos de Octavio Paz

Michelangelo

Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima, 
silêncio que fala, 
tempestades sem vento, mar sem ondas, 
pássaros presos, douradas feras adormecidas, 
topázios ímpios como a verdade, 
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro 
duma árvore e são pássaros todas as folhas, 
praia que a manhã encontra constelada de olhos, 
cesta de frutos de fogo, 
mentira que alimenta, 
espelhos deste mundo, portas do além, 
pulsação tranquila do mar ao meio-dia, 
universo que estremece, 
paisagem solitária. 

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra" 
Tradução de Luis Pignatelli

7 de jun. de 2009

O espelho

Quando menino, eu temia que o espelho
Me mostrasse outro rosto ou uma cega
Máscara impessoal que ocultaria
Algo na certa atroz. Temi também
Que o silencioso tempo do espelho
Se desviasse do curso cotidiano
Dos horários do homem e hospedasse
Em seu vago extremo imaginário
Seres e formas e matizes novos.
(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)
Agora temo que o espelho encerre
O verdadeiro rosto de minha alma,
Lastimada de sombras e de culpas,
O que Deus vê e talvez vejam os homens.

Jorge Luis Borges

22 de mar. de 2007

Ouro de Tolo :: Raul Seixas

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês

Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73

Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome
Por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa

Ah!
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado

Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "E daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes pra conquistar
E eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos

Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal

E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social

Eu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar

Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador