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17 de fev. de 2021

Eu que me Aguente Comigo

foto: Clarinda Rodrigues Lucas 


Vi sempre o mundo independentemente de mim. 
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, 
Mas isso era outro mundo. 
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja. 
Acima de tudo o mundo externo! 
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa

16 de jul. de 2018

Família


Uma cegonha parece
Porque é uma cegonha.
        Sonha
        E esquece —
Propriedade notável
De toda ave aviável.

Fernando Pessoa

5 de out. de 2015

Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Fernando Pessoa (Bernardo Soares)

Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito como através dele compreender?
As nossas sensações passam — como possuí-las pois — ou o que elas mostram muito menos. Possui alguém um rio que corre, pertence a alguém o vento que passa?
Não possuímos nem um corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões e a minha vida é vã por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outro possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  p. 271.

25 de set. de 2015

Às vezes, em sonho triste :: Fernando Pessoa

 Paul Klee, 1926

Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.
Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.
O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.
Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

21-11-1909
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).  p. 15.

26 de ago. de 2014

Viajar ! Fernando Pessoa

Koshiro Onchi

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.


Poesias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  p. 182.

A CRIANÇA que ri na rua :: Fernando Pessoa

Banksy (Bristol, 1974/75 ) 











A CRIANÇA que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo

21 de ago. de 2014

Talvez quem vê bem não sirva para sentir :: Fernando Pessoa

Van Gogh 
Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.

8-11-1929
“O Pastor Amoroso”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994.  - 109.

28 de jul. de 2014

Poema da Lavadeira :: Fernando Pessoa

 Raphael Kirchner
A lavadeira no tanque
Bate roupa em pedra bem.
Canta porque canta e é triste
Porque canta porque existe;
Por isso é alegre também.
Ora se eu alguma vez
Pudesse fazer nos versos
O que a essa roupa ela fez,
Eu perderia talvez
Os meus destinos diversos.
Há uma grande unidade
Em, sem pensar nem razão,
E até cantando a metade,
Bater roupa em realidade...
Quem me lava o coração?

10 de jul. de 2014

Há doenças piores que as doenças :: Fernando Pessoa

Marc Chagall, 1918

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida,
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

In. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.  p. 50.

24 de abr. de 2014

A Mentira Está em Ti :: Fernando Pessoa

Julien Dupré

Olá, guardador de rebanhos, 
Aí à beira da estrada, 
Que te diz o vento que passa?" 

"Que é vento, e que passa, 
E que já passou antes, 
E que passará depois. 
E a ti o que te diz?" 

"Muita cousa mais do que isso. 
Fala-me de muitas outras cousas. 
De memórias e de saudades 
E de cousas que nunca foram." 

"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti." 

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X" 

2 de mar. de 2014

O pastor amoroso perdeu o cajado de Fernando Pessoa


O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.

Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo;
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito. 

10-7-1930

27 de fev. de 2014

Mário Gruber Correia (Santos, 1927 - Cotia, 28 de dezembro de 2011) foi um pintor, gravador, escultor e muralista brasileiro

Se sou alegre ou sou triste?…
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?
Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sou o que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.
Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim…
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim…
Mas a alegria é assim…

Fernando Pessoa















19 de jan. de 2014

Passagem das Horas de Fernando Pessoa - Álvaro de Campos

Trago dentro do meu coração,

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,

O coral das Maldivas em passagem cálida,

Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...

Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi — ...

E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...

A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...

Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...

Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...

Tempestades em torno ao Guardafui...

E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...

E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...

Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...

Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,

Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,

Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,

Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,

Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,

Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,

Deste desassossego no fundo de todos os cálices,

Desta angústia no fundo de todos os prazeres,

Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,

Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.

Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,

Consanguinidade com o mistério das coisas, choque

Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,

Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,

Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,

A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair

Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,

E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,

E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,

Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,

E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...

Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,

Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...

Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,

Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.

Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.

Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...

Tão decadente, tão decadente, tão decadente...

Só estou bem quando ouço música, e nem então.

Jardins do século dezoito antes de 89,

onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,

A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.

Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.

Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.

Estou no caminho de todos e esbarram comigo.

Minha quinta na província,

Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.

Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,

E fica sempre, fica sempre, fica sempre,

Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.

Só humanitariamente é que se pode viver.

Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,

Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver

Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,

Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.

Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,

E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse

Amei e odiei como toda a gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,

E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.

Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,

Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.

Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,

Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,

Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,

A direcção constantemente abandonada do nosso destino,

A nossa incerteza pagã sem alegria,

A nossa fraqueza cristã sem fé,

O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,

A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,

A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.

Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,

Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,

Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,

Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.

Por isso se para mim materna, ó noite tranquila...

Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,

Tu que não existes, que és só a ausência da luz,

Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,

Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,

Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,

Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,

E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...

Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,

Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,

Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,

Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...

Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,

Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,

Tu, rainha, tu castelã, tu, dona pálida, vem...

22-5-1916

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. Lisboa: Estampa, 1993.