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8 de jul. de 2015

A última dança :: Eva Christina Zeller

Chagall

mais uma vez funk e fox e hitparade
mais uma vez dalli dalli sri lanka e a pé
atravessar
os alpes
mais uma vez lilases lírios e doce de cereja
mais uma vez o último tango
o último metro
mais um livro elucidativo
uma solução do enigma
mais uma inspecção do automóvel
uma vela pelo amor
o requiem à luz do sol
mais um relógio que eternamente dá horas


Sigo a Água
Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado
Relógio d´Água, 1996.

1 de jun. de 2015

Retrato antigo :: José António Lozano

(...) Era então quando fazíamos uma improvisada encenação com teias e vestidos passados de moda, papel, cartão, sedas: as nossas ilusões. Marionetes e títeres.
- Podemos começar?
- Adiante
- Quem fala?
- Adivinha com o coração, pensa com as tuas mãos. Respira pela ponta dos pés. Vês com os teus dedos?
- Onde está o meu chocolate?
- Cala e anda, bebe e cala. Fala Clara?
- Calma
- Clara!
- Chama!?
A chama da vela apagava-se. Bela chama que se extinguia numa doce impressão de revolta. Nós estávamos rígidas, tão rígidas como bonécos, tão incompreensíveis como as nossas fabulosas pistas.
Uma vela, um mínimo candeeiro e aí estavam os nossos jogos de pátios azúis e de distâncias de nuvem. Os nossos olhos de carvão e vinho reflecteriam-se nas taças de chocolate de tia Letícia: carvão, vinho (nos nossos olhos, no nosso brilho) e chocolate sobre as colecções de borboletas e cenários de roupas velhas que descem como um conto de falas ligeiras. Como escrever no círculo mágico das horas oblíquas um momento ou a intuição dum momento? Doce, pois, percorre pelos sensos a voz da casa e tudo acorda veloz, veloz como dedos finos, na sua mímica e no teatro do mundo: a nossa pequena estância.
Vagarosamente a tarde decaía e a noite antiquíssima impunha o seu desvelado sonho. Eu crescia com as minhas incomparáveis amigas na mais iluminada das excitações de seda ou antigas varandas. Era eu realmente?
fonte:  Retrato antigo. Laiovento, 1993.

20 de abr. de 2015

Toda saudade é uma espécie de velhice :: João Guimarães Rosa


 Joan Miro, 1925
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”

Grande Sertão: Veredas.

2 de mar. de 2015

Infância :: Helena Kolody

Anita Malfatti 
Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!

Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.

A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...

O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.

Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.

Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.

Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!

No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)

Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...

Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras!

 in A Sombra no Rio, 1951)

25 de out. de 2014

Foi assim :: Constança Lucas

Foi assim que te disse adeus
nem sabias
numa tarde depois, numa tela
soube que teria de me despedir
não para sempre, apenas uma parte de mim
onde os amigos se sentem
mesmo a magoar dizem
não consegues
parte de ti ficou na primeira camada
as tintas que vieram cobriram-te
as horas não são as mesmas

Queria despedir-me sem mágoa
sem esta tristeza arrepiante
insistente em dar-se aos outros
antes em nada querer
hoje o cansaço está grande
tenho que te dizer tanta coisa
tenho que te dizer das cores
tenho que te dizer dos corpos
tenho que te dizer adeus

Voltarei a falar contigo
os dois seremos outros
e sim as horas serão mais parecidas
um outro abraço
de mundos em construção
deixados os receios nos bolsos
em continentes abraçados
tenho que te dizer as palavras
tenho que te dizer os novos caminhos
tenho que te dizer até já

21 de fev. de 2014

Valsa Brasileira :: Chico Buarque e Edu Lobo



Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu

Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer

https://www.youtube.com/watch?v=Gx7EW-l9erg&feature=kp