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10 de mar. de 2015

Não há guarda-chuva :: João Cabral de Melo Neto

Brassai, 1934

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.


fonte: João Cabral de Melo Neto - Obra completa. Editora Nova Aguilar, 1994. p. 79.

13 de nov. de 2013

As armadilhas do tempo - Eduardo Galeano


Sentada de cócoras na cama, ela olhou-o longamente, percorreu seu corpo nu da cabeça aos pés, como se estudasse as sardas e os poros, e disse:
- A única coisa que eu mudaria em você é o endereço.
E a partir de então viveram juntos, foram juntos, se divertiam brigando pelo jornal no café-da-manhã, e cozinhavam inventando e dormiam feito um nó.
Agora este homem, mutilado dela, quer recordá-la como era. Como era qualquer uma das que ela era, cada uma com sua própria graça e seu próprio poderio, porque aquela mulher tinha o espantoso costume de nascer com frequência.
Mas não. A memória se nega. A memória não quer devolver a ele nada além desse corpo gelado onde ela não estava, esse corpo vazio das muitas mulheres que ela foi.


Bocas do tempo.  L&PM, 2012