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15 de mar. de 2015

Avó de José Saramago



Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.» Assim mesmo. Eu estava lá.
[...]
Entre os bacorinhos acabados de nascer aparecia de vez em quando um ou outro mais débil que inevitavelmente sofreria com o frio da noite, sobretudo se era Inverno, que poderia ser-lhe fatal. No entanto, que eu saiba, nenhum desses animais morreu. Todas as noites, meu avô e minha avó iam buscar às pocilgas os três ou quatro bácoros mais fracos, limpavam-lhes as patas e deitavam- nos na sua própria cama. Aí dormiriam juntos, as mesmas mantas e os mesmos lençóis que cobririam os humanos cobririam também os animais, minha avó de um lado da cama, meu avô no outro, e, entre eles, três ou quatro bacorinhos que certamente julgariam estar no reino dos céus.
[...]

José Saramago em As pequenas Memórias

15 de jun. de 2014

As palavras são novas :: José Saramago

Philip Wilson Steer
As palavras são novas: nascem quando
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias

Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.


4 de jun. de 2014

No silêncio dos olhos :: José Saramago

FernandKhnopff

Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos? 

27 de mai. de 2014

Privatização de José Saramago

próximo de São Francisco Xavier, MG


Privatize-se tudo,
privatize-se o mar e o céu, 
privatize-se a água e o ar, 
privatize-se a justiça e a lei, 
privatize-se a nuvem que passa, 
privatize-se o sonho, 
sobretudo se for diurno e de olhos abertos. 

José Saramago - Cadernos de Lanzarote

19 de mai. de 2014

Dilatar o espaço da vida :: José Saramago

Gabriel Metsu, c.1664-

Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida.


Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, nº 50, 18 de Janeiro de 1983
In José Saramago nas Suas Palavras

4 de jan. de 2013

A mais profunda das alegrias e o mais pungente dos desgostos de José Saramago



"Quanto a imaginar como é possível juntarem-se em uma pessoa sentimentos tão contrapostos como, no caso que temos vindo a apreciar, a mais profunda das alegrias e o mais pungente dos desgostos, para depois descobrir ou criar aquele único nome com que passaria a ser designado o sentimento particular consequente a essa junção, é uma tarefa que muitas vezes foi empreendida no passado e que em cada uma delas se resignou, como um horizonte que se vai incessantemente deslocando, a não alcançar sequer o limiar da porta das inefabilidades que esperam deixar de o ser. A expressão vocabular humana não sabe ainda, e provavelmente não o saberá nunca, conhecer, reconhecer e comunicar tudo quanto é humanamente experimentável a sensível. Há quem afirme que a causa principal desta seriíssima dificuldade reside no facto de os seres humanos serem no fundamental feitos de argila, a qual, como as enciclopédias prestimosamente nos explicam, é uma rocha sedimentar detrítica formada por fragmentos minerais minúsculos, do tamanho de um/duzentos e cinquenta e seis avos de milímetro. Até hoje, por mais voltas que se dessem à linguagens, não se conseguiu achar um nome para isso." SARAMAGO, José. A caverna, São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.  302-303

25 de dez. de 2012

Os anjos de José Saramago

Wilton Diptych (c. 1395 – 1399)

(...) os anjos existem para tornar-nos a vida mais fácil, amparam-nos quando vamos a cair ao poço, guiam-nos no perigoso passo da ponte sobre o precipício, puxam-nos pelo braço quando estamos quase a ser atropelados por uma quadriga sem freio ou por um automóvel sem travões. Um anjo realmente merecedor de Jesus (...)”

fonte: O Evangelho segundo Jesus Cristo, 1991.

23 de jul. de 2012

O conto da ilha desconhecida (parte) de José Saramago

Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa.

14 de jul. de 2012

O conto da ilha desconhecida de José Saramago (parte)

(...)  nem seria preciso dizer o que ele pensou, É bonita, mas o que ela pensou, sim, Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio. Ela entregou-lhe uma vela, disse, Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu, daqui a pouco, quando lá estiver em baixo, deitado no seu beliche, vir-lhe-ão à ideia outras frases, mais espirituosas, sobretudo mais insinuantes, como se espera que sejam as de um homem quando está a sós com uma mulher. Perguntava-se se já dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou que andava à procura dela e não a encontrava em nenhum sítio, que estavam perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa ás pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo.(...)

10 de jan. de 2012

Os sonhos de José Saramago

Tachibana - Ao amanhecer

"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. 
Mas são também os sonhos que lhe fazem um coroa de luas, 
por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, 
se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu"
In: Memorial do Convento

30 de dez. de 2011

"Ensaio sobre a Cegueira" de Contardo Calligaris

No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.
São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).
Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.

Folha de São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2008

26 de dez. de 2011

Que é mais sagrado, se a morte, se a vida de José Saramago

Quanto ao que é mais sagrado, se a morte, se a vida, respondo que a vida. Mas nem toda a gente estará de acordo: a prova é que dar um pontapé a um vivo não suscitará qualquer advertência sobre o sagrado da vida, ao passo que tê-lo dado a um morto provocaria logo o protesto: "Tenha vergonha! A morte é sagrada!..." José Saramago 

In PÚBLICO de 25 de Outubro de 1997 "O presente é uma linha ténue"  por Carlos Câmara Leme

24 de dez. de 2011

O Evangelho segundo Jesus Cristo de José Saramago

 Sandro Botticelli - The Cestello Annunciation c. 1489

“Dizer um anjo que não é anjo de perdões, ou nada significa, ou significa demasiado, vamos por hipótese, que é anjo das condenações, é como se exclamasse, Perdoar, eu, que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo. Mas os anjos, por definição, tirando aqueles querubins de espada flamejante que foram postos pelo Senhor a guardar o caminho da árvore da vida para que não voltassem pelos frutos dela os nossos primeiros pais, ou os seus descendentes, que somos nós, os anjos, íamos dizendo, não são polícias, não se encarregam das sujas mas socialmente necessárias tarefas de repressão, os anjos existem para tornar-nos a vida mais fácil, amparam-nos quando vamos a cair ao poço, guiam-nos no perigoso passo da ponte sobre o precipício, puxam-nos pelo braço quando estamos quase a ser atropelados por uma quadriga sem freio ou por um automóvel sem travões. Um anjo realmente merecedor de Jesus (...)”

23 de dez. de 2011

"O presente é uma linha ténue" de José Saramago

José Saramago: Quando cito aquela frase de Croce que diz que "toda a História é História contemporânea", quero dizer, à minha maneira, que tudo o que sucedeu está a suceder, que todos os mortos estão vivos, que não somos nada sem eles. O presente é uma linha ténue que se desloca ininterruptamente para o que chamamos futuro, ou talvez um "eixo" móvel sobre o qual o tempo vai rolando, segundo a segundo. Ou página a página.


Entrevistador: Se, como escreve, "contra a morte não se pode fazer nada", por que é que "um Cemitério é como uma espécie de biblioteca onde o lugar dos livros se encontrasse ocupado por pessoas enterradas"?


José Saramago: É certo que, objectivamente, nada podemos contra a morte. Mas a memória, a memória "sobrevivente", faz pairar, sobre a morte, a vida. Muitas vezes se chamou a uma biblioteca não consultada cemitério de livros. É a primeira vez, suponho, que alguém teve a ideia de chamar a um cemitério biblioteca de pessoas. Tudo está em consultar ou não a biblioteca, qualquer que ela seja. A memória, quero dizer.

In: In PÚBLICO de 25 de Outubro de 1997 "O presente é uma linha ténue" Por Carlos Câmara Leme

25 de out. de 2011

Todos os sonhos


Imagem: Stina Persson

O poeta não será mais que memória fundida nas memórias, para que um adolescente possa 
dizer-nos que tem em si todos os sonhos do mundo, como se ter sonhos e declará-lo fosse primeira invenção sua. Há razões para pensar que a língua é, toda ela, obra de poesia.
José Saramago  Diário de Notícias (2009)

2 de out. de 2011

Chega a hora


Sempre chega a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais
 do que antes julgávamos. 
José Saramago