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9 de nov. de 2015

Bom dia, amor :: Carminho (carta de Maria José)

Gustave Caillebotte

Bom dia amor,
Dizem as rosas da janela ao ver o sol nascer
Bom dia amor,
Tal como as rosas espero sempre por te ver
E um dia há-de ser dia corra o vento para onde for
Juntam-se as rosas para me ver com o meu amor

Bom dia digo sempre quando vens
Quando passam por mim os olhos seus
E mais diria ao olhos do meu bem
Se ao menos uma vez vissem os meus
E mais diria ao olhos do meu bem
Se ao menos uma vez vissem os meus

Daqui eu digo tudo o que te vejo
A cada teu passar na minha rua
Assim é como vivo e assim te beijo
E trago esta maneira de ser tua
Assim é como vivo e assim te beijo
E trago esta maneira de ser tua


13 de out. de 2015

Eu ébrio ::Adriano Wintter

 Sam Francis

bebeu
todo vinho
suave da noite
quebrou
sua taça
infinita de estrelas
e acordou
solarmente na rua
com bandos de aves
no terno azul

25 de mai. de 2015

Rua do Bonjardim :: Inês Lourenço

Vindo do marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal, no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre.

13 de mai. de 2015

Os Amantes :: Julio Cortazar

HUNDERTWASSER, FRIEDENSREICH

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala 
entre seus dedos, línguas doces 
lambem a úmida palma, correm pelas falanges, 
e acima a noite está cheia de olhos. 

São os amantes, sua ilha flutua à deriva 
rumo a mortes na relva, rumo a portos 
que se abrem nos lençóis. 
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.


Tradução de José Jeronymo Rivera

11 de fev. de 2015

Short trip :: Alice Ruiz


minha cidade
cai pela janela
como um cisco

meu olho
caleidoscópio
é o coração que acolhe
fragmento por fragmento
até que toda cidade
e sua história
caiba dentro

nessa rua, por exemplo,
já passei há muito tempo
mas não tinha esse olhar
indo embora

para o futuro,
a memória desse momento
que passou agora
será a lembrança de outro
e ainda outro mais antigo

caio como um cisco
na cidade
somos, as duas,
uma rápida paisagem.
De passagem.



5 de fev. de 2015

VIVÊNCIA :: FLORA FIGUEIREDO


Se sua rua porventura aparecer 
coberta de pétalas caídas 
pela inclemência 
de um vento qualquer, 
não faça nada. 
Deixe-a assim desordenada 
e descabida. 
São reticências que sobraram da estação passada. 
Acabarão varridas pela própria vida. 

In Amor a céu aberto, 1992 


26 de ago. de 2014

A CRIANÇA que ri na rua :: Fernando Pessoa

Banksy (Bristol, 1974/75 ) 











A CRIANÇA que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo

22 de jul. de 2014

A meu favor :: Alexandre O'Neill

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos


30 de jun. de 2014

Poemeto Matinal :: Abgar Renault

Patrick DuMouchel
O ar da manhã beija a minha face. 
A minha alma beija o ar leve da manhã 
e olha a paisagem longínqua da cidade, 
que branqueja alegremente na distância 

e sorri humanamente 
um sorriso branco no caiado das casas 
que montam os flancos das colinas azuis 
e espiam pelos olhos escancarados das janelas. 

7 horas. Vai começar a função. 
O despertador das sirenes fura liricamente 
o silêncio doirado da manhã. 
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez 

e esfrega os olhos deslumbradamente... 
Meu Ford fordeja dentro da manhã 
e sobe a rua velha do meu bairro, 
arquejando, bufando, fumando gasolina. 

Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça 
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso. 
O ar leve beija o radiador 
e beija a minha face. 

A meninice de todo o meu ser 
na doirada névoa desta manhã! 

31 de dez. de 2013

Cantiga de embalar :: Rainer Maria Rilke


                                                  Matizes - Namoro 
Gostava de cantar a alguém uma cantiga de embalar,
sentar-me a seu lado, e ficar sossegado.
Gostava de embalar-te murmurando uma canção,
estar contigo na orla do sono.
Ser a única pessoa acordada em casa
a saber que a noite está fria.
Gostava de ouvir cá dentro e lá fora,
ouvir-te, ouvir o mundo e os bosques.
Os relógios tocam a rebate,
e podes ver o tempo até ao fim escoar-se.
Ao fundo da rua um estranho passa
e incomoda o cão de um vizinho.
Por trás, o silêncio. Pousei os meus olhos
em ti como numa mão aberta,
e eles prendem-te ao de leve e deixam-te ir,
quando algo se move no escuro

         

16 de set. de 2013

Para uma amiga que se foi



"Entre muitas outras coisas, 
tu eras para mim uma janela através da qual podia ver as ruas. 
Sozinho não o podia fazer."
 Kafka em carta para um amigo

1 de jul. de 2013

Crônicas de Viagem de Cecília Meireles



E o viajante apenas inclina a cabeça nas mãos, na sua janela, para entender dentro de si o que é sonho
e o que é verdade. E todos os dias são dias novos e antigos, e todas as ruas são de hoje e da
eternidade: e o viajante imóvel é uma pessoa sem data e sem nome, na qual repercutem todos os
nomes e datas que clamam por amor, compreensão, ressurreição. (1999, p. 104)

MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem, vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.


28 de nov. de 2012

O Sapo - Débora Siqueira Bueno


Aos pés da Serra do Sapo
um lugar perdido,
por assim dizer, nenhum,
traz o mesmo nome:
Sapo.
Nem gastou poesia
para o batizado –
o batráquio feio,
córrego qualquer
é o seu padrinho.

De lá se avista a serra,
dita do Sapo,
crivada de estacas
que vão, buliçosas,
sondar seu interno.
Lá havia ouro,
diziam escravos,
mas braços miúdos
de força pequena
não foram buscá-lo.

Aos pés da Serra do Sapo
a pequena vila,
de tão pobre,
quase dói.
O gado esquálido pasta
a grama murcha e seca
no entorno da capela,
que a Companhia
prometeu cobrir
com novo telhado.

São andaimes toscos
nos quais se equilibram
homens murchos, secos,
que vão consertando
a capela onde
nem sabem se um dia
poderão rezar.
Se estarão vivos
ou, não é bem certo,
capela haverá.

Na vila do Sapo,
novo movimento
levanta a poeira
vermelha e grudenta.
Logo toldará
o brilho prateado,
pois nessa beirada
perdida do mundo
inda existe quem
areie as panelas.

A Companhia promete
caminhão pipa
pra lavar as ruas,
assentar poeiras,
descansar os homens
da vista do pó,
descansar a vista
do que está por vir –
rês de matadouro,
não se olha o olho.

Ao lugar chamado
Sapo
foi determinada,
com muita discrição,
morte inexorável:
sua terra será levada.
Serra tão erma,
gente tão órfã,
poucos prantearão
sua agonia.

Lentamente será aberta
a redondez da montanha.
Feita a incisão,
interior exposto,
virão os abutres,
urubus enormes,
prontos pra comer
com voracidade
todo o conteúdo
daquela barriga.

Talvez mesmo a serra
cedesse, bom grado,
parte do seu ventre.
Não terá tal chance.
Separada em partes,
toda esquartejada,
os seus intestinos
virarão pedaços
que viajarão
pra esse mundão de Deus.

O Sapo e sua serra
aguardam
a execução da sentença.
Homens, bois, cães sonolentos,
senhoras, crianças, latas reluzentes –
todos irão embora.
Tomarão seu rumo,
buscarão a vida;
não cria raízes
chão que esfarinha.

Montanhas esvaeceram
qual fossem levadas
pela ação do tempo.
Mas assim morreram, de morte matada:
Serra da Pedra Grande, Serra do Curral,
Pico do Cauê.
Assiste-se agora
à morte anunciada:
a Serra do Sapo
tornará  buraco.

9 de jun. de 2012

A criança que ri na rua de Fernando Pessoa


A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo —

Tudo isso excede este rigor 
Que o raciocínio dá a tudo, 
E tem qualquer coisa de amor, 
Ainda que o amor seja mudo. 

Poesias Inéditas (1930-1935).  Lisboa: Ática, 1955