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14 de set. de 2021

Não te rendas :: Mario Benedetti

Não te rendas, ainda é tempo
De se ter objetivos e começar de novo,
Aceitar tuas sombras,
Enterrar teus medos
Soltar o lastro,
Retomar o vôo.

Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem,
Perseguir teus sonhos,
Destravar o tempo,
Correr os escombros
E destapar o céu.

Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio queime,
Ainda que o medo morda,
Ainda que o sol se esconda,
E o vento se cale,
Ainda existe fogo na tua alma.
Ainda existe vida nos teus sonhos.

Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o tens querido e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
Tirar as trancas,
Abandonar as muralhas que te protegeram,

Viver a vida e aceitar o desafio,
Recuperar o sorriso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo
Celebrar a vida e se apossar dos céus.

Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio te queime,
Ainda que o medo te morda,
Ainda que o sol ponha e se cale o vento,
Ainda existe fogo na tua alma,
Ainda existe vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um novo começo,
Porque esta é a hora e o melhor momento
Porque não estás sozinho, porque eu te amo

4 de jan. de 2021

Sempre :: Noemi Jaffe

Alexander Liberman


mesmo que a física há muito tempo tenha descoberto que o tempo é irreversível e que caminhamos sem volta para um fim qualquer, todo fim de ano teima em negar essa lei e nos faz acreditar, como num poema, como nas colheitas, como nos nascimentos, que não é nada disso. tudo vai e vai se repetir para sempre e termos chegado a dezembro significa que felizmente recomeçará janeiro e celebraremos humanamente a repetição.

15 de dez. de 2020

Hélio Pellegrino, Carta a Fernando Sabino

Quanto você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!
Carta a Fernando Sabino, revista pelo autor ao fazer 60 anos

17 de ago. de 2020

Gosto :: Débora Siqueira Bueno


Monet

Gosto do silêncio de casa
quando estou sozinha.
Ficar só,
prazer desimpedido do ser
pejado em acanhamento.
Estimo abraços quando o afeto é natural,
limpidez amiga,
amor cristalino.
Mas não me aborrece a falta do gesto.
Respeito tempos e distâncias.
Tão bom ter ao lado
quem comigo segue,
me acompanha ou espera
nas constantes incursões 
ao anterior,
ao interior.

Gosto de pisar em cascas de sementes,
ruído crepitante
que se casa tão bem aos passos;
caminhar sobre pedras,
espaços abertos,
descobrir percursos.
Aprecio o barulho de chuva,
quer mansa ou tempestade;
e o cheiro que a anuncia
e o aroma que a sucede e permanece
de terra farta,
agradecida.
Gosto de roça, de café com broa de fubá,
de gente simples
que conversa no alpendre
e conta casos.

Na cidade experimento o anonimato
e o prazer estético;
contemplo a arquitetura.
Praças bem traçadas,
linhas retas à Le Corbusier,
curvas de Niemeyer
e os vestígios
de diferentes antigos.
Ofusca a iluminação feérica;
vou ao cinema, ao teatro, às livrarias;
saboreio
o café expresso
a vida expressa
as expressões 
dessemelhantes,
as metamorfoses.

Posta sobre a cama sou colcha de retalhos,
cores e detalhes.
No entanto gosto da vida que trilhei
e amo os espaços
onde posso respirar fundo
e abrir os braços
em abraço ao sítio
onde encontro
a experiência
de pertença.

Mas nos lugares
que me são sagrados,
em respeito profundo e reverência
descalço as sandálias e,
de joelhos,
ponho a minha alma.


29 de nov. de 2017

O Relógio :: João Cabral de Melo Neto

Ao redor da vida do homem 
há certas caixas de vidro, 
dentro das quais, como em jaula, 
se ouve palpitar um bicho. 

Se são jaulas não é certo; 
mais perto estão das gaiolas 
ao menos, pelo tamanho 
e quadradiço de forma. 

Uma vezes, tais gaiolas 
vão penduradas nos muros; 
outras vezes, mais privadas, 
vão num bolso, num dos pulsos. 

Mas onde esteja: a gaiola 
será de pássaro ou pássara: 
é alada a palpitação, 
a saltação que ela guarda; 

e de pássaro cantor, 
não pássaro de plumagem: 
pois delas se emite um canto 
de uma tal continuidade 

que continua cantando 
se deixa de ouvi-lo a gente: 
como a gente às vezes canta 
para sentir-se existente.

10 de nov. de 2017

Parábola :: Wislawa Szymborska ( 1923 - 2012 )

 Ivan Aivazovsky

Os Pescadores tiraram uma garrafa das profundezas.
Havia nela um papel que continha as seguintes palavras:
"Acudam! Estou aqui. O oceano atirou-me para uma ilha deserta. Estou junto à água à espera de ajuda. Depressa. Estou aqui!"
- Não traz data. Por certo já é tarde. A garrafa poderia ter andado à deriva por muito tempo - disse o primeiro pescador.
- E não indicou o lugar. O oceano, pode ser um qualquer - disse o segundo pescador.
- Não é por ser tarde nem longe. A ilha Aqui pode estar em qualquer parte - disse o terceiro pescador.
Sentiram embaraço, fez-se silêncio. Com as verdades universais, é sempre assim.

1 de out. de 2017

ESTRANGEIRO ::JULIA DE SOUZA

Frank Hallam Day

jurou conhecer

cada lugar de

cada página da

national geographic

nem é tão frio no polo sul

no meu tempo se podia

viver acho que vim

de navio trinta dias ou

mais até o porto de

santos preciso parar e

lembrar tudo o que fiz.

por fim apontou o mar

e disse no meu tempo

tudo isso aí

era mato.

14 de jul. de 2016

O mínimo do máximo :: Paulo Leminski

Odilon Redon

Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente medesfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo

6 de jul. de 2016

A exceção e a regra :: BERTOLT BRECHT

Nós vos pedimos com insistência:

Nunca digam – Isso é natural.

Diante dos acontecimentos de cada dia.

Numa época em que reina a confusão,

Em que corre o sangue,

Em que se ordena a desordem,

Em que o arbitrário tem força de lei,

Em que a humanidade se desumaniza…

Não digam nunca: Isso é natural.

A fim de que nada passe por ser imutável.

Sob o familiar, descubram o insólito.

Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável.

Que tudo que seja dito ser habitual

Cause inquietação.

Na regra é preciso descobrir o abuso.

E sempre que o abuso for encontrado,

É preciso encontrar o remédio.

Vocês, aprendam a ver, em lugar de olhar bobamente.

É preciso agir em vez de discutir.

Aí está o que uma vez conseguiu dominar o mundo.

Os povos acabaram vencendo.

Mas não cantem vitória antes do tempo.

Ainda está fecundo o ventre de onde surgiu a coisa imunda.


31 de dez. de 2015

Versos de fim de ano :: Carlos Drummond de Andrade

Botero
I

Você sabia que a lua
ainda não foi visitada?
Que há sempre uma lua nova
dentro de outra, e encantada?

É lá que vivem as graças
que nesta quadra do ano
a gente sonha e deseja
a todo o gênero humano.

Mas a lua, preguiçosa,
nem sempre atende à pedida?
A gente pede assim mesmo
até melhorar a vida.

II
É tempo de pesquisar no tempo
uma estrela nova, um sorriso;
de dizer à nuvem: sê escultura;
e à escultura: sê nuvem.

Tempo de desejar, tempo de pensar
madura e docemente o bom tempo de acontecer
(e mesmo não acontecendo fica desejado),
pássaro-mensageiro, traço
entre vida e esperança
como satélite no espaço.

III
Na volta da esperança,
um princípio de vida:
ser outra vez criança
por toda, toda a vida.


30 de out. de 2015

AINDA NÃO :: CORA CORALINA


I

Ainda não...
É a espera.
Afirmação
do tempo que vai chegar
no tempo que está passando.

II

Ainda não...
É a promessa.
Certeza
do tempo de querer
no tempo que vai chegando.
A mulher é a terra —
terra de semear.

III

Ainda não...
O tempo disse dormindo:
Por que esperar?
Plantar, colher
no amanhecer.
Não retardar o instante
maravilhoso da colheita.

IV

Veio o semeador,
semearam juntos
e colheram
o encantamento do fruto.
Lamentaram juntos
Retardamos tanto... no tempo.



In: Meu livro de cordel, 1976

22 de out. de 2015

TEMPO É TERNURA :: Fabrício Carpinejar

Viver tem sido adiantar o serviço do dia seguinte. No domingo, já estamos na segunda, na terça já estamos na quarta e sempre um dia a mais do dia que deveríamos viver. Pelo excesso de antecedência, vamos morrer um mês antes.

Está na hora de encarar a folha branca da agenda e não escrever. O costume é marcar o compromisso e depois adiar, que não deixa de ser uma maneira de ainda cumpri-lo.

Tempo é ternura.

Perder tempo é a maior demonstração de afeto. A maior gentileza. Sair daquele aproveitamento máximo de tarefas. Ler um livro para o filho pequeno dormir. Arrumar as gavetas da escrivaninha de sua mulher quando poderia estar fazendo suas coisas. Consertar os aparelhos da cozinha, trocar as pilhas do controle remoto. Preparar um assado de 40 minutos. Usar pratos desnecessários, não economizar esforço, não simplificar, não poupar trabalho, desperdiçar simpatia.

Levar uma manhã para alinhar os quadros, uma tarde para passar um paninho nas capas dos livros e lembrar as obras que você ainda não leu. Experimentar roupas antigas e não colocar nenhuma fora. Produzir sentido da absoluta falta de lógica.

Tempo é ternura.

O tempo sempre foi algoz dos relacionamentos. Convencionou-se explicar que a paixão é biológica, dura apenas dois anos e o resto da convivência é comodismo.

Não é verdade, amor não é intensidade que se extravia na duração.

Somente descobriremos a intensidade se permitirmos durar. Se existe disponibilidade para errar e repetir. Quem repete o erro logo se apaixonará pelo defeito mais do que pelo acerto e buscará acertar o erro mais do que confirmar o acerto. Pois errar duas vezes é talento, acertar uma vez é sorte.

Acima da obsessão de controlar a rotina e os próximos passos, improvisar para permanecer ao lado da esposa. Interromper o que precisamos para despertar novas necessidades.

Intensidade é paciência, é capricho, é não abandonar algo porque não funcionou. É começar a cuidar justamente porque não funcionou.

Casais há mais de três décadas juntos perderam tempo. Criaram mais chances do que os demais. Superaram preconceitos. Perdoaram medos. Dobraram o orgulho ao longo das brigas. Dormiram antes de tomar uma decisão.

Cederam o que tinham de mais precioso: a chance de outras vidas. Dar uma vida a alguém será sempre maior do que qualquer vida imaginada.

Publicado no jornal Zero Hora. 21/06/201, p. 2. Porto Alegre (RS), Edição N° 16736

29 de set. de 2015

Tempo Perdido : Renato Russo

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo

Todos os dias antes de dormir
Lembro e esqueço como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder

Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério, e selvagem
Selvagem, selvagem

Veja o sol dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
Castanhos

Então me abraça forte
E me diz mais uma vez que já estamos 
Distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo

Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes acesas agora
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu

Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens
Tão jovens, tão jovens



24 de jul. de 2015

Tempo do coração :: Ana Jácomo


Os mais lindos bordados da vida são feitos
 com os fios de delicadeza
 que respeitam a sabedoria amorosa
 do tempo do coração.

8 de jul. de 2015

A última dança :: Eva Christina Zeller

Chagall

mais uma vez funk e fox e hitparade
mais uma vez dalli dalli sri lanka e a pé
atravessar
os alpes
mais uma vez lilases lírios e doce de cereja
mais uma vez o último tango
o último metro
mais um livro elucidativo
uma solução do enigma
mais uma inspecção do automóvel
uma vela pelo amor
o requiem à luz do sol
mais um relógio que eternamente dá horas


Sigo a Água
Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado
Relógio d´Água, 1996.

6 de jul. de 2015

Retrovisor :: João Anzanello Carrascoza


John Brack

Na verdade, esse menino que narra [Aos 7 e aos 40] é um menino velho. É o homem que retorna e está se remeninando pelo seu olhar no tempo. E o personagem mais velho, que é esse cara que está aos quarenta, não é ele que narra. Apesar das situações que vive, ele é um menino que não tem domínio sobre sua vida, que está diante de um mundo que o leva para lá e para cá, que não tem ainda o domínio de suas rédeas e que não terá. É um homem com a insegurança, as dúvidas, a fragilidade e a vulnerabilidade de um menino. A gente acabou ficando com uma capa que tem tudo a ver: um automóvel, que [representa] olhar para trás para ir para frente. Às vezes é preciso olhar para trás, entender a nossa história para dar um passo adiante. E é o que a gente faz num automóvel, num retrovisor. Você precisa dele para olhar lá atrás, ver se não passou dos lugares, ou o que passou, olhar um pouquinho de novo e ver quão bonito era — mas você está indo para frente. Seu olhar, a maior parte do tempo, é para o que está vindo, para o teu presente, para o domínio da tua direção. E isso é um ir e vir do adulto e da criança. No fim, o tempo todo a gente é aquele que não cresceu e aquele crescido que ainda lembra o tempo de crescer.fonte: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/joao-anzanello-carrascoza/

25 de jun. de 2015

Inventário :: Jorge Luis Borges

Há que encostar uma escada para subir. Falta-lhe um degrau.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Há o cheiro a umidade.
O entardecer entra pela casa em lâminas de luz.
As vigas do céu raso estão próximas e o piso está vencido.
Ninguém ousa pôr-se de pé.
Há um velho divã desengonçado.
Há umas ferramentas inúteis.
Ali está a cadeira de rodas do morto.
Há um pé de candeeiro.
Há uma rede de dormir paraguaia, com borlas, a desfiar-se.
Há utensílios e papéis.
Há uma estampa do estado-maior de Aparicio Saravia.
Há um velho grelhador a carvão.
Há um relógio de tempo parado, com o pêndulo partido.
Há uma moldura desdourada, sem tela.
Há um tabuleiro de cartão e umas peças desemparelhadas.
Há uma braseira de dois pés.
Há uma arca de cabedal.
Há um exemplar bolorento do Livro dos Mártires de Foxe, em intrincada escrita gótica.
Há uma fotografia que já pode ser de qualquer pessoa.
Há uma pele já gasta que foi de tigre.
Há uma chave que perdeu a sua porta.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Ao esquecimento, às coisas do esquecimento, acabo de erguer este monumento,
Sem dúvida menos duradouro que o bronze e que se confunde com elas.
........................

Hay que arrimar una escalera para subir. Un tramo le falta.

¿Qué podemos buscar en el altillo
Sino lo que amontona el desorden?
Hay olor a humedad.
El atardecer entra por la pieza de plancha.
Las vigas del cielo raso están cerca y el piso está vencido.
Nadie se atreve a poner el pie.
Hay un catre de tijera desvencijado.
Hay unas herramientas inútiles.
Está el sillón de ruedas del muerto.
Hay un pie de lámpara.
Hay una hamaca paraguaya con borlas, deshilachada.
Hay aparejos y papeles.
Hay una lámina del estado mayor de Aparicio Saravia.
Hay una vieja plancha a carbón.
Hay un reloj de tiempo detenido, con el péndulo roto.
Hay un marco desdorado, sin tela.
Hay un tablero de cartón y unas piezas descabaladas.
Hay un brasero de dos patas.
Hay una petaca de cuero.
Hay un ejemplar enmohecido del Libro de los Mártires de Foxe, en intrincada letra gótica.
Hay una fotografía que ya puede ser de cualquiera.
Hay una piel gastada que fue de tigre.
Hay una llave que ha perdido su puerta.
¿Qué podemos buscar en el altillo
Sino lo que amontona el desorden?
Al olvido, a las cosas del olvido, acabo de erigir este monumento,
Sin duda menos perdurable que el bronce y que se confunde con ellas.


Jorge Luis Borges, A Rosa Profunda (1975)