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10 de ago. de 2018

Há um pássaro azul no meu peito de Charles Bukowski

Fiona Watson 

(…) Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
Eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
Depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você ?”

In: Textos Autobiográficos. tradução de Pedro Gonzaga.

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there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

Charles Bukowski in The Last Night of the Earth Poems. Santa Rosa CA: Black Sparrow, 1992. 


23 de ago. de 2016

O remo sou eu mesmo... Mia Couto


Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demónios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.
      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.
      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.
      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvilho estava um rio parado.
      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.
      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.
      - A ponte entre eu e você, meu filho.
      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.
      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?
      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.
      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais-velho dizia.
      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.
      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.
      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direcção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-mos.
      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...
fonte: A Chuva Pasmada. Editorial Caminho, 2004.

18 de ago. de 2015

O que Me Dói não É :: Fernando Pessoa

Eugenio Cuttica

O que me dói não é 
O que há no coração 
Mas essas coisas lindas 
Que nunca existirão... 

São as formas sem forma 
Que passam sem que a dor 
As possa conhecer 
Ou as sonhar o amor. 

São como se a tristeza 
Fosse árvore e, uma a uma, 
Caíssem suas folhas 
Entre o vestígio e a bruma. 

in: Cancioneiro 

9 de jul. de 2015

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio :: Daniel Faria

Street Light - Giacomo Balla,
1909
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a




homens que são como lugares mal situados

15 de jun. de 2015

Despedida :: Rubem Braga

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

fonte: A Traição das Elegantes.  Sabiá, 1967.  p. 83.

22 de mai. de 2015

Saudades! :: Fernando Pessoa


Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
 
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
fonte: http://arquivopessoa.net/

27 de abr. de 2015

Um poema de Chagall :: Marc Chagall Um poema de Chagall Marc Chagall (7 de julho de 1887 — 28 de março de 1985)

Chagall

Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta.
Me cobre com uma pedra perfumada.

Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
À procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis porque sorrio
Quando mal brilha meu sol.
Ou choro
Como uma chuva leve
Na noite.

Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas caras
Se cobriam de um orvalho amoroso.
Se fundiam como o perfume de uma rosa.

Hoje em dia me parece
Que até quando recuo
Estou avançando
Para uma alta portada
Atrás da qual se estendem muralhas
Onde dormem trovões extintos
E relâmpagos partidos.
Só é meu
O mundo que trago dentro da alma.


Tradução: Manuel Bandeira

19 de abr. de 2015

OS INFELIZES CÁLCULOS DA FELICIDADE :: Mia Couto

O homem da história é chamado Julio Novesfora. Noutras falas o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exacta, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurónios:
- É conta que se faz sem cabeça.
Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afectos. Do ponto de vista da algebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos a erva não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem de boi. E a cobra morde sem ódio. É só o justo praticar da dentadura injectavel dela. Na natureza não se concebe sentimento. Assim, a vida prosseguia e Julio Novesfora era nela um aguarda-factos. Certa vez, porém, o mestre se apaixonou por uma aluna, menina de incorrecta idade, toda a gente advertia essa menina é mais que nova, não dá para si.
- Faça as contas mestre.
Mas o mestre já perdera o calculo. Desvalessem os razoáveis conselhos. Ainda mais grave ele perdia o matemático tino. Já nem sabia o abecedário dos números. Seu pensamento perdia as limpezas da lógica. Dizia coisas sem pés. Parecia, naquele caso, se confirmar o lema quanto mais sexo menos nexo. Agora, a razão vinha tarde de mais. O mestre já tinha traçado a hipotenusa à menina. Em folgas e folguedos, Julio Novesfora se afastava dos rigores da geometria. O oito deitado é um infinito. E, assim, o professor ataratonto, relembrava:
- A paixão é o mundo a dividir por zero.
Não questionassem era aquela a sua paixão. Aquilo era um amor idimensional, desses para os quais nem tanto há mar, nem tanto há guerra. Chamaram um seu tio, único familiar que parecia merecer-lhe as autoritárias confianças. O tio lhe aplicou muita sabedoria, doutrinas de por facto e roubar argumento. Mas o matemático resistia:
- Se reparar, tio, é a primeira vez que estou a viver.
Corolariamente, é natural que cometa erros.
- Mas, sobrinho, você sempre foi de calculo. Faça agora contas à sua vida.
- Essa conta tio, não se faz de cabeça. Faz-se de coração.
O professor demonstrava seu axioma, a irresoluvel paixão pela desidosa menina. Tinha experimentado a fruta nessa altura que o Verão ainda está trabalhando nos açucares da polpa. E de tão regalado, arregalava os olhos. Estava com a cabeça lotada daquela arrebitada menina. O tio ainda desfilou avisos não vislumbrava ele o perigo de um desfecho desilusionista? Não sabia ele que toda a mulher saborosa é dissaborosa? Que o amor é falso como um tecto. Cautela, sobrinho, olho por olho, dente prudente. Novesfora, porém, se renitentava, inóxidável. E o tio foi dali para a sua vida. Os namoros prosseguiram. O mestre levava a menina para a margem do mar onde os coqueiros se vergavam, rumorosos, dando um fingimento de frescura.
- Para bem amar não há como ao pé do mar, ditava ele.
A menina só respondia coisas simples, singelices. Que ela gostava do Verão.
- Do Inverno gosto é para chorar. As lágrimas, no frio, me saem grossas, cheiinhas de água.
A menina falava e o mestre Novesfora ia passeando as mãos pelo corpo dela, mais aplicado que cego lendo braille.
- Vai falando, não pare ­ pedia ele enquanto divertia os dedos pelas secretas humidades da menina. Gostava dessa fingida distracção dela, seus actos lhe pareciam menos pecaminosos. Os transeuntes passavam, deitando culpas no velho professor. Aquilo é idade para nenhumas-vergonhas? Outros faziam graça:
- Sexagenário ou sexogenário?
O mestre se desimportava. Recolhia a lição do embondeiro que é grande mas não dá sombra nenhuma. Vontade de festejar deve eclodir antes de acabar o baile. Tanto tempo decorrera em sua vida e tão pouco tempo tivera para viver. Tudo estando ao alcance da felicidade porque motivo se usufruem tão poucas alegrias? Mas o sapo não sonha com charco se alaga nele. E agora que ele tinha a mão na moça é que iria parar? Uma noite, estando ela em seu leito, estranhos receios invadiram o professor essa menina vai fugir, desaparecida como o arco-íris nas traeiras da chuva. Afinal, os outros bem tinham razão chega sempre o momento em que o amendoim se separa da casca. Novesfora nem chegou de entrar no sono, tal lhe doeram as suspeitas do desfecho. Passaram-se os dias. Até que, certa vez, sob a sombra de um coqueiro, se escutaram os acordes de um lamentochão. O professor carpia as já previsiveis mágoas? Foram a ver, munidos de consolos. Encontraram não o professor mas a menina derramada em pranto, mais triste que cego sentado em miradouro. Se aproximaram, lhe tocaram o ombro. O que passara, então? Onde estava o mestre?
- Ele foi, partiu com outra.
Resposta espantável afinal, o professor é que se fora, no embora, sem remédio. E partira como? Se ainda ontem ele aplicava a ventosa naquele lugar? A ditosa namorada respondeu que ele se fora com outra, extranumerária. E que esta seria ainda muito mais nova, estreável como uma manhã de Domingo. Provado o doce do fruto do verde se quer é o sabor da flor. Enquanto a lagrimosa encharcava réstias de palavras os presentes se foram afastando. Se descuidavam do caso, deixando a menina sob a sombra do coqueiro, solitária e sózinha, no cenário de sua imprevista tristeza. Era Inverno, estação preferida por suas lágrimas.

 In "Histórias Abensonhadas"

6 de abr. de 2015

"Terceto" :: Eucanaã Ferraz

Martial Raysse, 1971
Não há matéria para se fazer tristeza
nesta manhã, manhã perfeita
se a mão que me deu maio fosse a tua.

25 de jan. de 2015

14 de dez. de 2014

Canção Final - Drummond

Jim Hughes

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

8 de dez. de 2014

TAMBÉM ESTE CREPÚSCULO... :: PABLO NERUDA

Hemos perdido aun este crepúsculo.
Nadie nos vió esta tarde com las manos unidas
mientras la noche azul caía sobre el mundo.

He visto desde mi ventana
la fiesta del poniente en los cerros lejanos.

A veces como una moneda
se encendía un pedazo de sol, entre mis manos.

Yo te recordaba con el alma apretada
de esa tristeza que tú me conoces.

Entoces dónde estabas?
Entre qué gentes?
Diciendo qué palabras?
Por qué se me vendrá todo el amor de golpe
cuando me siento triste, y te siento lejana?

::::::::::::::::::

Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

(Tradução de Fernando Assis Pacheco)

PABLO NERUDA, in VINTE POEMAS DE AMOR E UMA CANÇÃO DESESPERADA. D. Quixote, 2007.

28 de jun. de 2014

A moça anônima da história :: Clarice Lispector

Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim. Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que a tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose.  Neurose de guerra.

fonte: A Hora da Estrela. Rocco, 1998.

28 de mai. de 2014

Elegia de Cecilia Meireles

Maria Primachenko

Minha tristeza é não poder mostrar - te as nuvens brancas,
e as flores novas, como aroma em brasa,
com sua coroas crepitantes de abelhas.
Teus olhos sorririam,
agradecendo a Deus o céu e a terra:
eu sentiria teu coração feliz
como um campo onde choveu.
Minha tristeza é não poder acompanhar contigo
o desenho das pombas voantes,
o destino dos trens pelas montanhas
e o brilho tênue de cada estrela
brotando à margem do crepúsculo.
Tomarias o luar nas tuas mãos,
fortes e simples como as pedras,
e dirias apenas: ‘ Como vem tão clarinho!’
E nesse luar das tuas mãos se banharia a minha vida,
sem perturbar sua claridade,
mas também sem diminuir minha tristeza.
Cecília Meireles

14 de mai. de 2014

Lluvia de Mayo :: Luis Pastor y Dulce Pontes

Piet Mondrian

Estoy esperando un barco
que me lleve a tu corazón
Lluvia de Mayo
moja mi cuerpo
mi alma no.

Estoy esperando un barco
que me lleve a tu pensamiento
Lluvia de Mayo
por qué‚ esta tristeza
en mi contento.

Estoy esperando un barco
que me lleve hasta tus besos
Lluvia de Mayo
empuja mis velas
a un buen puerto.

Estoy esperando un barco
que me lleve a tu corazón
Lluvia de Mayo
sigo buscando
ser mi canción.

4 de mar. de 2014

Rosas amarelas :: Carlos Heitor Cony

Cada cidade tem, mais ou menos, o Carnaval que merece. No Paraná, o Carnaval é alegre. Em Recife e Olinda, predominam a tradição, a festa burilada pelas troças, os maracatus.
Mas meu assunto é o Rio: aqui nasci e vivo, aqui pretendo morrer. A pichação é livre: trata-se do pior Carnaval do mundo. Tirante a folia, que inundam as ruas e salões, o que sobrou foi tristeza e aflição de espírito.
Acontece que me canso de ser humano e já estou enjoado de alegria, tanto a espontânea, sadia e varonil pela glória do Brasil --como é a alegria baiana, quanto a industrializada, careta e debochada que explode no Rio. No fundo, dão na mesma.
Fui ao Jardim da Saudade, lá nos fins do Rio, onde o subúrbio acaba e começa o nada. Era aniversário da morte de minha mãe, e eu acordei pensando nela. Levei-lhe flores, "restos arrancados da terra", segundo o soneto machadiano, e me perdi pelas ruas do subúrbio que não mais conheço.
E vi um Carnaval que ainda perdura ao longo dos trilhos da Central e da Leopoldina: blocos de sujos, crianças fantasiadas --uma perseguição em cima de mim-- o folião simples que vai de nada mesmo, mas veste uma alegria que parece estar acabando para sempre em vários lugares.
O cemitério vazio --vazio de vivos, para ser exato. Eu era o solitário visitante que na manhã de Carnaval levou rosas amarelas para um pouco de terra marcada pela placa simples, de granito. Não pensei em nada, nem de rezar sou mais.
Carnavalesco a meu modo, senti uma bruta alegria de saber que as rosas amarelas ali ficariam, vivendo o espaço da manhã de todas as rosas. E que lá fora, no dia e na vida que me esperavam, nada importava além da verdade de ter pisado o chão, a terra única onde nossos mortos nos esperam, sem pressa, sem apelos, mas com o amor provado pela eternidade do nada.

9 de fev. de 2014

O alfabeto no parque - Adélia Prado

Charlie Spear

Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
 à fazenda da vovó que nunca existiu
 porque ela era pobre como Jó.
 Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
 quero ser feliz, isto é amarelo.
 E não consigo, isto é dor.

 Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
 pessoas dizendo entre soluços:
 «não aguento mais».

 Moro num lugar chamado globo terrestre
 onde se chora mais
 que o volume das águas denominadas mar,
 para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.

 Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
 Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.

 Imagine que uma dita roda-gigante
 propicia passeios e vertigens entre
 luzes, música, namorados em êxtase.
 Como é bom! De um lado os rapazes.
 Do outro as moças, eu louca para casar
 e dormir com meu marido no quartinho
 de uma casa antiga com soalho de tábua.

 Não há como não pensar na morte,
 entre tantas delícias, querer ser eterno.
 Sou alegre e sou triste, meio a meio.
 Levas tudo a peito, diz a minha mãe,
 dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.

 A mãe não sabe, cinema é como diria o avô:
 «cinema é gente passando.
 Viu uma vez, viu todas.»

 Com perdão da palavra, quero cair na vida.
 Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde…
 Assim escrevo: tarde. Não a palavra,
 a coisa.

20 de jan. de 2014

As bênçãos de Manoel de Barros

Leonardo Varuzza 

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.