8 de nov. de 2011

Orquídea de novembro - branca e amarela


A verdadeira crise por Vladimir Saflate



E se, para além da crise econômica, política e ambiental que parece atualmente ser um fantasma a assombrar as sociedades capitalistas, outra crise estivesse à espreita? 

Uma crise ainda mais brutal, dotada da força de abalar os fundamentos da normatividade existente.

Lembremos como Max Weber mostrou que o advento do capitalismo trazia, necessariamente, a constituição de uma forma de vida marcada por um modo específico de relação aos desejos e ao trabalho.

Tal forma de vida, cuja face mais visível era a ética protestante do trabalho, baseava-se em um modo de articular autonomia como autogoverno, unidade coerente das condutas e da liberdade como capacidade de afastar-se dos impulsos naturais. Ou seja, ela trazia no seu bojo a criação da noção moderna de indivíduo. 

Mas, e se estivéssemos hoje às voltas com uma profunda crise psicológica advinda do colapso dessa noção tão central para as sociedades capitalistas modernas?

Uma crise psicológica significa aumento insuportável do sofrimento psíquico devido à desestruturação de nossas categorias de ação e de orientação do desejo.

O sociólogo Alain Ehrenberg havia cunhado uma articulação consistente entre a atual epidemia de depressão e um certo "cansaço de ser si mesmo".

Por sua vez, boa parte dos transtornos psíquicos mais comuns (como os transtornos de personalidade narcísica e de personalidade borderline) são, na verdade, as marcas da impossibilidade dos limites da personalidade individual darem conta de nossas expectativas de experiência.

É possível que, longe de serem meros desvios patológicos, estes sejam alguns exemplos de uma crise em nossos modelos de conduta que crescerá cada vez mais.

Vladimir Saflate, Livre-docência pela Universidade de São Paulo.

Conhecemos um momento histórico no qual uma crise psicológica dessa natureza ocorreu. Momento marcado pela retomada do ceticismo e de um desespero tão bem retratado nos quadros do pintor Hieronymus Bosch.

Ele só foi superado por processos históricos, fundamentais para o aparecimento da individualidade moderna, nomeados, não por acaso, de Renascimento e de Reforma.

Tais palavras nos lembram que algo estava irremediavelmente morto e desgastado. Algo precisava renascer e ser reformado.

Talvez estejamos entrando em uma outra longa era de crise psicológica onde veremos nossos ideais de individualidade e de identidade morrerem ou, ao menos, algo fundamental de tais ideais morrer.
O problema é que, algumas vezes, a morte dura muito tempo. Algumas vezes, precisamos de acontecimentos que ocorrem duas vezes para, enfim, terminarmos de morrer.

Nós: autobiografismos de Olívia Niemeyer


Imagem: Olívia Niemeyer - Nós: autobiografismos 

“O passado é aquilo que você lembra,  aquilo que você imagina que lembra, que se convence que lembra ou finge lembrar”
Harold Pinter

7 de nov. de 2011

Orquídea de novembro


Papel de arroz


Mira: 
as coisas construídas oscilam 
numa frágil arquitetura 
(os papéis cultivados 
em campos 
guardarão sempre a memória seca 
dos dias alagados). 
Também as palavras revelam somente o que escondem: 
eis a solução de uma questão 
delicada. 
Ana Martins Marques

A grande família de Magritte



                                                                  The Large Family 1963   Rene Magritte  (1898-1967)

6 de nov. de 2011

Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres de Clarice Lispector

                                                                                            brincos de www.envedette.com.br

Usaria brincos? 
Hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, 
alguma coisa modestamente nua... 

Clarice Lispector In: Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres 

Arco-íris duplo

O Departamento de Meteorologia da Austrália e a Associação Meteorológica e Oceanográfica Australiana divulgaram as fotos que farão parte do seu calendário de 2012. Acima, um arco-íris duplo na praia de Wombarra, em New South Wales.

Com um pouquinho de medo

Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. 
Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. 
Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
Maria Rita Kehl

Lês

                                                 Poesia de Ana Martins Marques

5 de nov. de 2011

Antes de morrer :: Maria Rita Kelh


Muitos anos antes de morrer já estou convencida de que finjo que a vida é literatura. Não vou mudar isso justo antes de morrer. Quem sabe, no máximo, melhorar o enredo. E transitar melhor entre os gêneros.
1) Viver a vida de uma outra mulher, muito diferente de mim. Uma mulher da roça, como eu gostava de brincar na infância. Das que acorda antes do sol, trabalha na horta, dorme ao escurecer, sem luz e sem televisão. Fogão de lenha, bichos no quintal, solidão sem abandono. A mulher que nunca fui na roça que não há.
2) Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
3) Gravar um CD cantando, sozinha, músicas das que mais gosto de cantar. Ou, radicalizando, mudar de profissão. Virar cantora. De boate, se é que ainda existem.
4) Ficar amiga do Chico Buarque. Só amiga. Andar a pé pelo Rio conversando com ele, horas a fio. Recordar letras de música, sambas antigos. Contar e ouvir coisas da vida.
5) Conhecer um compositor (não precisa ser o Chico Buarque) que me peça letras para as músicas dele. Virar parceira, ouvir nossos sambas no rádio.
6) Virar artista plástica. Trocar a noite pelo dia em um atelier enorme, brincando com os materiais, com as tintas, com o peso e a densidade da matéria. Encontrar o estranho silêncio da matéria. Desintoxicar a mente do excesso de palavras.
7) Virar escritora de ficção. Acordar todos os dias com saudades de meus personagens, ansiosa para entrar mais uma vez na vida deles.
8) Queimar – isso é urgente – todos os meus diários, dos quinze aos quarenta e cinco anos. Uma fogueira e tanto.
9) Ir a um pai ou mãe de santo para iniciar-me no Candomblé; virar mãe de santo também, receber entidades, aprender a jogar búzios. Gostaria de ter acesso à experiência do inconsciente pré freudiano – o inconsciente revelado a contrapelo da psicanálise.
10) Saber como é a morte. Ficar acordada até o fim. Despedir-me de tudo. Dizer a meus filhos, como o Coelho, do John Updike: “não é tão mau assim”.

4 de nov. de 2011

Os dez mandamentos da Danuza Leão


Pensamento musical


Belle, bonne, sage, plaisante et gente,
A ce jour cy que l'an se renouvelle,
Vous fais le don d'une chanson nouvelle
Dedans mon cuer qui a vous se presente.

De recevoir ce don ne soyés lente,
Je vous suppli, ma doulce damoyselle;

(Belle, bonne, sage...)
Car tant vous aim qu'aillours n'ay mon entente,
Et sy scay que vous estes seulle celle
Qui fame avés que chascun vous appelle:
Flour de beauté sur toutes excellente.

(Belle, bonne, sage...)

3 de nov. de 2011

O bom marido


Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Tereza na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
- Custódio tem todos os ingredientes
para ser um bom marido.
- Quais são os ingredientes ?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.

Carlos Drummond de Andrade

2 de nov. de 2011

Tenhamos paciência, andorinhas curtas


Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, 

As sensações renascem de si mesmas sem repouso, 
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! 
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras, 

E os suspiros que dou são violinos alheios; 
Eu piso a terra como quem descobre a furto 
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, 

Mas um dia afinal eu toparei comigo... 
Tenhamos paciência, andorinhas curtas, 
Só o esquecimento é que condensa, 
E então minha alma servirá de abrigo.

Mário de Andrade

31 de out. de 2011


Há então a idade de sofrer 
 e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas? 
Drummond

Do intraduzível


.... Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!
Ana Vieira Pereira

Escada e rosas



Amor - O Interminável Aprendizado

...

Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.
O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final.
Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
Absurdo.
Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?
Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.
Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.
Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado.
Optou por aceitar a sua ignorância.
Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.
E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

Affonso Romano de Sant'Anna, In "21 Histórias de amor", Francisco Alves Editora – Rio de Janeiro, 2002, pág.11.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...