10 de nov. de 2011

Quanto maior for a sua própria beleza.



Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Fernando Pessoa in Livro do desassossego

O vídeo da vovó Magnólia de Jairo Marques

Minha mulher, que lá em casa é minha deusa, compartilhou com os amigos de uma dessas redes que pescam gente, as tais redes sociais, um vídeo que mostrava sua avó, uma típica mineira de palavras curtinhas e de sorriso "facim, facim", contando histórias de vaidades, de saudades, de futebol e de família.
Embora eu não tenha conhecido dona Magnólia, a avó em questão, adorei e me emocionei ao ver aquela senhora sentada em um sofá bem confortável dando uma "entrevista" informal a uma das filhas para ser apreciada a qualquer tempo, inclusive na posteridade, por toda a parentada.
Vó Magnólia usava um roupão cor-de-rosa -quase na mesma tonalidade da flor homônima de seu registro-, óculos grandes e redondos, mas que já pouco serviam, e cabelos irretocáveis, tingidos de castanho. Articulava as ideias com a memória meio barro meio tijolo devido à fúria do Alzheimer, mas nada que comprometesse o conteúdo geral. 
Mesmo que por estes dias as câmeras de filmar estejam sempre ao alcance das mãos -há até caneta, botão e broches que gravam tudo em Brasília-, são pouquíssimas as vezes em que os velhos viram "atores" para contar sobre as coisas do mundo, seja de seus mundos, seja de suas coisas.
É bem diferente dos bebês, dos bichinhos e dos engraçados. Esses estão gravados e espalhados por todos os lados, ainda mais no tal universo digital. Não faltam "facebooqueiros" que os postam rotineiramente na internet fazendo fofices, dando cambalhotas desajeitadas, correndo atrás do próprio rabo, tendo atitudes de adultos ou soltando falas anedóticas. 
Vovós Magnólias, não as vi muitas. E digo isso para não comprometer a sagacidade de minha memória escrevendo que ela foi a única. Ser velho não tem graça? Ser velho não é bonito? Ser velho não tem alegria? Ser velho não dá o que falar? 
Defendo que a mira das lentes seja mais voltada àqueles que a gente ama, àqueles de quem o tempo já não conta a favor, àqueles que justificam de maneira completa a palavra saudade. Mesmo que, rotineiramente, eles digam que "detestam essas coisas modernas", insista, grave escondidinho, brinque de fazer novela, de imitar o Jô Soares entrevistando. 
Imagine tirar das gavetas tecnológicas essas lembranças sempre que o coração tiver vontade, que a alma gritar por um banho de recordação. Que delícia seria morrer de rir relembrando o jeito como o vozinho penteava o que chamava de cabelo para, depois, esconder tudo na boina xadrez. 
E o que dizer da cena da mãe nervosa balangando as pernas e reclamando do caçula ingrato que não liga há dois dias? Não gravei nem gravaram minha avó na máquina de costura fazendo bainha ou no fogão frigindo seus famosos bolinhos de polvilho. Seria delicioso poder revê-la de formas simples assim, escutar sua voz e encantar-me, mais uma vez, com seus causos já quase esquecidos. 

9 de nov. de 2011

Saber de si

                                                   Henri Rousseau -  La Bohémienne endormie

A noite chegou bruscamente. Meu coração bateu alheio. Sem saber de si.
Livia Garcia Roza 

Guardo junto


"Escolho, desdobro, renovo, substituo e traduzo: guardo junto com as minhas coisas e digo que é meu."
Olívia Niemeyer


Olívia Niemeyer nasceu no Rio de Janeiro e atualmente mora em Campinas. Mestra e doutora em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recebeu orientação de Nair Kremer, Vera Ferro e Carlos Fajardo nas artes visuais. Participa de salões desde 1997. Seu trabalho artístico privilegia formas interrompidas e fragmentadas, focos de dispersão e multiplicidade.

8 de nov. de 2011

Orquídea de novembro - branca e amarela


A verdadeira crise por Vladimir Saflate



E se, para além da crise econômica, política e ambiental que parece atualmente ser um fantasma a assombrar as sociedades capitalistas, outra crise estivesse à espreita? 

Uma crise ainda mais brutal, dotada da força de abalar os fundamentos da normatividade existente.

Lembremos como Max Weber mostrou que o advento do capitalismo trazia, necessariamente, a constituição de uma forma de vida marcada por um modo específico de relação aos desejos e ao trabalho.

Tal forma de vida, cuja face mais visível era a ética protestante do trabalho, baseava-se em um modo de articular autonomia como autogoverno, unidade coerente das condutas e da liberdade como capacidade de afastar-se dos impulsos naturais. Ou seja, ela trazia no seu bojo a criação da noção moderna de indivíduo. 

Mas, e se estivéssemos hoje às voltas com uma profunda crise psicológica advinda do colapso dessa noção tão central para as sociedades capitalistas modernas?

Uma crise psicológica significa aumento insuportável do sofrimento psíquico devido à desestruturação de nossas categorias de ação e de orientação do desejo.

O sociólogo Alain Ehrenberg havia cunhado uma articulação consistente entre a atual epidemia de depressão e um certo "cansaço de ser si mesmo".

Por sua vez, boa parte dos transtornos psíquicos mais comuns (como os transtornos de personalidade narcísica e de personalidade borderline) são, na verdade, as marcas da impossibilidade dos limites da personalidade individual darem conta de nossas expectativas de experiência.

É possível que, longe de serem meros desvios patológicos, estes sejam alguns exemplos de uma crise em nossos modelos de conduta que crescerá cada vez mais.

Vladimir Saflate, Livre-docência pela Universidade de São Paulo.

Conhecemos um momento histórico no qual uma crise psicológica dessa natureza ocorreu. Momento marcado pela retomada do ceticismo e de um desespero tão bem retratado nos quadros do pintor Hieronymus Bosch.

Ele só foi superado por processos históricos, fundamentais para o aparecimento da individualidade moderna, nomeados, não por acaso, de Renascimento e de Reforma.

Tais palavras nos lembram que algo estava irremediavelmente morto e desgastado. Algo precisava renascer e ser reformado.

Talvez estejamos entrando em uma outra longa era de crise psicológica onde veremos nossos ideais de individualidade e de identidade morrerem ou, ao menos, algo fundamental de tais ideais morrer.
O problema é que, algumas vezes, a morte dura muito tempo. Algumas vezes, precisamos de acontecimentos que ocorrem duas vezes para, enfim, terminarmos de morrer.

Nós: autobiografismos de Olívia Niemeyer


Imagem: Olívia Niemeyer - Nós: autobiografismos 

“O passado é aquilo que você lembra,  aquilo que você imagina que lembra, que se convence que lembra ou finge lembrar”
Harold Pinter

7 de nov. de 2011

Orquídea de novembro


Papel de arroz


Mira: 
as coisas construídas oscilam 
numa frágil arquitetura 
(os papéis cultivados 
em campos 
guardarão sempre a memória seca 
dos dias alagados). 
Também as palavras revelam somente o que escondem: 
eis a solução de uma questão 
delicada. 
Ana Martins Marques

A grande família de Magritte



                                                                  The Large Family 1963   Rene Magritte  (1898-1967)

6 de nov. de 2011

Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres de Clarice Lispector

                                                                                            brincos de www.envedette.com.br

Usaria brincos? 
Hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, 
alguma coisa modestamente nua... 

Clarice Lispector In: Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres 

Arco-íris duplo

O Departamento de Meteorologia da Austrália e a Associação Meteorológica e Oceanográfica Australiana divulgaram as fotos que farão parte do seu calendário de 2012. Acima, um arco-íris duplo na praia de Wombarra, em New South Wales.

Com um pouquinho de medo

Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. 
Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. 
Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
Maria Rita Kehl

Lês

                                                 Poesia de Ana Martins Marques

5 de nov. de 2011

Antes de morrer :: Maria Rita Kelh


Muitos anos antes de morrer já estou convencida de que finjo que a vida é literatura. Não vou mudar isso justo antes de morrer. Quem sabe, no máximo, melhorar o enredo. E transitar melhor entre os gêneros.
1) Viver a vida de uma outra mulher, muito diferente de mim. Uma mulher da roça, como eu gostava de brincar na infância. Das que acorda antes do sol, trabalha na horta, dorme ao escurecer, sem luz e sem televisão. Fogão de lenha, bichos no quintal, solidão sem abandono. A mulher que nunca fui na roça que não há.
2) Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
3) Gravar um CD cantando, sozinha, músicas das que mais gosto de cantar. Ou, radicalizando, mudar de profissão. Virar cantora. De boate, se é que ainda existem.
4) Ficar amiga do Chico Buarque. Só amiga. Andar a pé pelo Rio conversando com ele, horas a fio. Recordar letras de música, sambas antigos. Contar e ouvir coisas da vida.
5) Conhecer um compositor (não precisa ser o Chico Buarque) que me peça letras para as músicas dele. Virar parceira, ouvir nossos sambas no rádio.
6) Virar artista plástica. Trocar a noite pelo dia em um atelier enorme, brincando com os materiais, com as tintas, com o peso e a densidade da matéria. Encontrar o estranho silêncio da matéria. Desintoxicar a mente do excesso de palavras.
7) Virar escritora de ficção. Acordar todos os dias com saudades de meus personagens, ansiosa para entrar mais uma vez na vida deles.
8) Queimar – isso é urgente – todos os meus diários, dos quinze aos quarenta e cinco anos. Uma fogueira e tanto.
9) Ir a um pai ou mãe de santo para iniciar-me no Candomblé; virar mãe de santo também, receber entidades, aprender a jogar búzios. Gostaria de ter acesso à experiência do inconsciente pré freudiano – o inconsciente revelado a contrapelo da psicanálise.
10) Saber como é a morte. Ficar acordada até o fim. Despedir-me de tudo. Dizer a meus filhos, como o Coelho, do John Updike: “não é tão mau assim”.

4 de nov. de 2011

Os dez mandamentos da Danuza Leão


Pensamento musical


Belle, bonne, sage, plaisante et gente,
A ce jour cy que l'an se renouvelle,
Vous fais le don d'une chanson nouvelle
Dedans mon cuer qui a vous se presente.

De recevoir ce don ne soyés lente,
Je vous suppli, ma doulce damoyselle;

(Belle, bonne, sage...)
Car tant vous aim qu'aillours n'ay mon entente,
Et sy scay que vous estes seulle celle
Qui fame avés que chascun vous appelle:
Flour de beauté sur toutes excellente.

(Belle, bonne, sage...)

3 de nov. de 2011

O bom marido


Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Tereza na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
- Custódio tem todos os ingredientes
para ser um bom marido.
- Quais são os ingredientes ?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.

Carlos Drummond de Andrade

2 de nov. de 2011

Tenhamos paciência, andorinhas curtas


Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, 

As sensações renascem de si mesmas sem repouso, 
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! 
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras, 

E os suspiros que dou são violinos alheios; 
Eu piso a terra como quem descobre a furto 
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, 

Mas um dia afinal eu toparei comigo... 
Tenhamos paciência, andorinhas curtas, 
Só o esquecimento é que condensa, 
E então minha alma servirá de abrigo.

Mário de Andrade

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...