14 de mai. de 2012

PIIA LEHTI (Finlândia 1973 )























Discurso de Cecilia Meireles


E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, 
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou, 
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou, 
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

13 de mai. de 2012

A minha filha junto de mim de Débora Siqueira Bueno

Jessie Willcox Smith

Para Lígia, que comigo escreveu esse poema.


A minha filha junto de mim lê os meus sonhos.
Tento evitá-lo –
aquilo não é coisa pra criança.
Insiste.
– Credo, mãe! Isso não é sonho, é pesadelo!
Senta-se e escreve em meu lugar –
A minha filha junto de mim.
Me junta a mim, a desjuntada,
me aconchega
e nina o desânimo em que me encontro.
Espanta o siso e abre o riso e fecho o livro
de onde brotam tais palavras mal escritas.
A minha filha junto de mim me traz de volta
ao mundo vivo em que pertenço a alguém
que me pertence e me escreve – filha.
Palavra forte.
Inscreve – mãe –
me faz alguém.
A minha filha junto de mim sonha seus sonhos
e abre o livro vivo que há em mim.

12 de mai. de 2012

Bauhinia, pata de vaca










Bauhinia L.) é um gênero da família das leguminosas (Caesalpinioideae), com mais de 200 espécies. Pertence a esse gênero a unha-de-vaca ou casco-de-vaca, árvore ornamental muito utilizada no paisagismo e na arborização urbana.

11 de mai. de 2012

As mães de Eugénio de Andrade



foto: Dorothea Lange

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.
1987

10 de mai. de 2012

Na ribeira deste rio de Fernando Pessoa


imagem: Lisboa, vista 

Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio
Nada me impede, me impele
Me dá calor ou dá frio

Vou vivendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa seqüência arrastada
Do que ficou para trás

Vou vendo e vou meditando
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali
E do seu curso me fio
Porque se o vi ou não vi
Ele passa e eu confio

Ele passa e eu confio

9 de mai. de 2012

Saudade

Saudade de Almeida Junior 

fitei intensamente a lua:
era o teu rosto
na noite do desespero.
de ti tive abundância
em tempo de penúria.
pude viver em graça
no abrigo que me davas.

ai, a saudade dessa estima antiga!
doce era ser sob a tua sombra:
errava no verde prado
perto da fonte de água fresca!

ibn 'ammâr 1031-1084
o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe. radução de adalberto alves. assírio & alvim, 1999

8 de mai. de 2012

Certas mulheres de Diva Cunha

Certas mulheres catam coisas pequeninas
conchas, feijões, letras

outras distraem-se nos espelhos
contam rugas

algumas contam nuvens
criam cachorros e gatos como crianças

certas mulheres guardam mágoas
ressentimentos, botões, elásticos

algumas são como certos homens
não contam nada
ocupadas com coisas incontáveis

 Diva Cunha (10 de dezembro de 1947, em Natal, RN)

Ivan Iakovlevich Bilibine (1876-1942) artista russo




















As rosas de Sophia de Mello Breyner Andresen



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

in Dia do Mar, 1947

Sabe, se quer que lhe diga, do que eu me lembro bem, e para mim o que é importante, é os sítios onde escrevi, as situações em que escrevi. Há um poema que diz: «Quando à noite desfolho e trinco as rosas». Isto é absolutamente verdade: eu ia para o jardim da minha avó colher rosas, a minha avó já tinha morrido e era um jardim semi-abandonado, colhia camélias no Inverno e rosas na Primavera. Trazia imensas rosas para casa, havia sempre uma grande jarra cheia delas em frente da janela, no meu quarto. E depois eu desfolhava e comia as rosas, mastigava-as... No fundo era a tentativa de captar qualquer coisa a que só posso chamar a alegria do universo, qualquer coisa que floresce. 

7 de mai. de 2012

Herança de Eugénio de Andrade


É a minha herança: o sorriso,
o azul de uma pedra branca.
Posso juntar-lhe, ao acaso da memória,
um ramo de madressilva inclinado
para as abelhas que metodicamente fazem
do outono o lugar preferido do verão,
um melro que deixou o jardim público
para fazer ninho num poema meu,
um barco chamado Cavalinho na Chuva
à espera de reparação no molhe da Foz.
Deve haver mais alguma coisa,
não serei tão pobre, cometemos sempre
a injustiça de não referir, por pudor,
coisas mais íntimas: um verso de Safo
traduzido por Quasimodo, a mão
que por instantes nos pousou no joelho
e logo voou para muito longe,
as cadências do coração
teimoso em repetir que não envelheceu.
In: Os Sulcos da Sede (2001)

6 de mai. de 2012

Amar de Jean Cocteau


"O verbo amar é difícil de conjugar; 
o seu passado nunca é simples, 
o seu presente é apenas indicativo 
e o seu futuro é sempre condicional".

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)