8 de fev. de 2013

Casaco Marrom de Danilo Caymmi, Renato Corrêa, Guttemberg Guarabyra



Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom
Tomar a mão da alegria e sair
Bye bye, Cecy "nous allons"
Copacabana está dizendo que sim
Botou a brisa à minha disposição
A bomba "H" quer explodir no jardim
Matar a flor em botão
Eu digo que não
Olhando a menina
De meia estação
Alô coração,
Alô coração, alô coração
Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom

7 de fev. de 2013

Outro poema dos dons : Jorge Luis Borges


Quero dar graças ao Divino
Labirinto dos efeitos e das causas 
Pela diversidade das criaturas 
Que formam este singular universo, 
Pela razão, que não cessará de sonhar 
Com um plano do labirinto, 
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses, 
Pelo amor que nos deixa ver os outros 
Tal como os vê a divindade, 
Pelo firme diamante e pela água solta, 
Pela álgebra, palácio de precisos cristais, 
Pelas místicas moedas de Ângelus Silesius, 
Por Schopenhauer, 
Que talvez tenha decifrado o universo, 
Pelo fulgor do fogo 
Que nenhum ser humano pode olhar sem
um assombro antigo, 
Pela carnaúba, o cedro e o sândalo, 
Pelo pão e pelo sal, 
Pelo mistério da rosa, 
Que prodiga cor e que não a vê, 
Por certas vésperas e dias de 1955, 
Pelos rijos tropeiros que na planura 
Arreiam os animais e a aurora, 
Pelas manhãs de Montevidéu, 
Pela arte da amizade, 
Pelo último dia de Sócrates, 
Pelas palavras que num crepúsculo foram ditas 
De uma cruz a outra cruz, 
Por aquele sonho do Islã que abarcou 
Mil noites e uma noite, 
Por aquele outro sonho do inferno, 
Da torre do fogo que purifica 
E das estrelas gloriosas, 
Por Swedenborg, 
Que conversava com os anjos nas ruas de Londres, 
Pelos rios secretos e imemoriais 
Que convergem em mim, 
Pelo idioma que, faz séculos, falei
na Nortúmbria, 
Pela espada e pela harpa dos saxões, 
Pelo mar, que é um deserto resplandecente 
E um número de coisas que não sabemos, 
Pela música verbal da Inglaterra, 
Pela música verbal da Alemanha, 
Pelo ouro, que resplende nos versos, 
Pelo épico inverno, 
Pelo título de um livro que não li: 'Gesta Dei per Francos', 
Por Verlaine, inocente como os pássaros, 
Pelo prisma de cristal e o pêndulo de bronze, 
Pelas listras do tigre, 
Pelas altas torres de São Francisco e da Ilha de Manhattan, 
Pela manhã no Texas, 
Por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral 
E cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos, 
Por Sêneca e Lucano, de Córdoba, 
Que antes do espanhol escreveram 
Toda a literatura espanhola,
Pelo jogo de xadrez, geométrico e bizarro, 
Pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce, 
Pelo cheiro medicinal dos eucaliptos, 
Pela linguagem, que pode simular a sapiência, 
Pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado, 
Pelo hábito, 
Que nos repete e confirma como um espelho, 
Pela manhã, que nos depara a ilusão de um começo, 
Pela noite, sua treva e sua astronomia, 
Pela coragem e a felicidade dos outros, 
Pela pátria, percebida nos jasmins 
Ou numa espada velha, 
Por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema, 
Pelo fato de que o poema é inesgotável 
E se confunde com a soma das criaturas 
E não chegará jamais ao último verso 
E varia como os homens, 
Por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos 
Por morrer tão devagar, 
Pelos minutos que precedem o sono, 
Pelo sono e a morte, 
Esses dois tesouros ocultos, 
Pelos íntimos dons que não enumero, 
Pela música, misteriosa forma do tempo.

Tradução de Paulo Mendes Campos
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OTRO POEMA DE LOS DONES

Jorge Luis Borges

Gracias quiero dar al divino Laberinto de los efectos y de las causas
Por la diversidad de las criaturas que forman este singular universo,
Por la razón, que no cesará de soñar con un plano del laberinto,
Por el rostro de Elena y la perseverancia de Ulises,
Por el amor, que nos deja ver a los otros como los ve la divinidad,
Por el firme diamante y el agua suelta,
Por el álgebra, palacio de precisos cristales,
Por las místicas monedas de Ángel Silesio,
Por Schopenhauer, que acaso descifró el universo,
Por el fulgor del fuego,
Que ningún ser humano puede mirar sin un asombro antiguo,
Por la caoba, el cedro y el sándalo,
Por el pan y la sal,
Por el misterio de la rosa, que prodiga color y que no lo ve,
Por ciertas vísperas y días de 1955,
Por los duros troperos que en la llanura arrean los animales y el alba,
Por la mañana en Montevideo,
Por el arte de la amistad,
Por el último día de Sócrates,
Por las palabras que en un crepúsculo se dijeron de una cruz a otra cruz,
Por aquel sueño del Islam que abarcó mil noches y una noche,
Por aquel otro sueño del infierno,
De la torre del fuego que purifica 
Y de las esferas gloriosas,
Por Swedenborg, que conversaba con los ángeles en las calles de Londres,
Por los ríos secretos e inmemoriales que convergen en mí,
Por el idioma que, hace siglos, hablé en Nortumbria,
Por la espada y el arpa de los sajones,
Por el mar, que es un desierto resplandeciente
Y una cifra de cosas que no sabemos 
Y un epitafio de los vikings,
Por la música verbal de Inglaterra,
Por la música verbal de Alemania,
Por el oro, que relumbra en los versos,
Por el épico invierno,
Por el nombre de un libro que no he leído: Gesta Dei per Francos,
Por Verlaine, inocente como los pájaros,
Por el prisma de cristal y la pesa de bronce,
Por las rayas del tigre,
Por las altas torres de San Francisco y de la isla de Manhattan,
Por la mañana en Texas,
Por aquel sevillano que redactó la Epístola Moral
Y cuyo nombre, como él hubiera preferido, ignoramos,
Por Séneca y Lucano, de Córdoba
Que antes del español escribieron 
Toda la literatura española,
Por el geométrico y bizarro ajedrez
Por la tortuga de Zenón y el mapa de Royce,
Por el olor medicinal de los eucaliptos,
Por el lenguaje, que puede simular la sabiduría,
Por el olvido, que anula o modifica el pasado,
Por la costumbre, que nos repite y nos confirma como un espejo,
Por la mañana, que nos depara la ilusión de un principio,
Por la noche, su tiniebla y su astronomía,
Por el valor y la felicidad de los otros,
Por la patria, sentida in los jazmines, o en una vieja espada,
Por Whitman y Francisco de Asís, que ya escribieron el poema,
Por el hecho de que el poema es inagotable
Y se confunde con la suma de las criaturas 
Y no llegará jamás al último verso 
Y varía según los hombres,
Por Frances Haslam, que pidió perdón a sus hijos por morir tan despacio,
Por los minutos que preceden al sueño,
Por el sueño y la muerte, esos dos tesoros ocultos,
Por los íntimos dones que no enumero,
Por la música, misteriosa forma del tiempo.

Amarelo giallo yellow amarillo jaune flava






Uma situação ímpar de Clarice Lispector


Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

- Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.
fonte: Visão do esplendor. Francisco Alves, 1975. p. 99

5 de fev. de 2013

Esmeralda, émeraude, emerald, smarald, smaragdno, Zümrüt


















Poesia de Paulo Henriques Britto

A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme  inacessível?
Vejamos só os anúncios.

São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.

4 de fev. de 2013

Entrega de Livia Garcia Roza


Quando entregamos todo o coração o perdemos para sempre.

Romance de Chico Buarque



Te seqüestrei
Vou te reter pra sempre
Na minha idéia
No teu lugar, talvez
Fique alguma tonta, uma dublê
Uma mulher alheia

Na minha idéia
Vives plenamente
És a pessoa
Com todas as canções
Os momentos bons e as horas más
Que a memória coa

Nas horas à toa
Às vezes ando a cismar
Serei eu mesmo
Este cantor confuso
Que te rodeia
Ou estarei feliz
Sendo eternamente o que já fui
Dentro da tua idéia


3 de fev. de 2013

Borboletas :: Manoel de Barros


Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza, 
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de 
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

O vento que vinha trazendo a Lua de Rubem Braga


Eu estava no apartamento de um amigo, no Posto 6, e quando cheguei à janela vi a Lua: já havia nascido toda e subido um pouco sobre o horizonte marinho, avermelhada. Meu amigo fora lá dentro buscar alguma coisa e eu ficara ali, sozinho, naquela janela, presenciando a ascensão da Lua cheia.
Havia certamente todos os ruídos da cidade lá embaixo, havia janelas acesas de apartamentos. Mas a presença da Lua fazia uma espécie de silêncio superior e de majestade plácida; era como se Copacabana regressasse ao seu antigamente sem casas, talvez apenas alguma cabana de índio humilde entre cajueiros e pitangueiras e árvores de mangue, talvez nem cabana de índio nenhum, índio não iria morar ali sem ter perto água doce. Mas dava essa impressão de coisa antiga, esse mistério remoto. Era um acontecimento silencioso e solene pairando na noitinha e no tempo, alguma coisa que irmana o homem e o bicho, a árvore e a água – a Lua.
Foi então que passou por mim a brisa da terra; e essa brisa que esbarrava em tantos ângulos de cimento para chegar até mim ainda tinha, apesar de tudo, um vago cheiro de folhas, um murmúrio de grilos distantes, um segredo de terra anoitecendo.
E pensei em uma pessoa; e sonhei que poderíamos estar os dois juntos, vendo a ascensão da Lua; deslembrados, inocentes, puros, na doçura da noitinha como dois bichos mansos vagamente surpreendidos e encantados perante o mistério e a beleza eterna da Lua.
fonte: Braga, Rubem. Um cartão de Paris.  Record, 1997. p. 126

2 de fev. de 2013

Tema e voltas de Manuel Bandeira



Mas para quê 
tanto sofrimento,
se nos céus há o lento
deslizar da noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se lá fora o vento
é um canto na noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se agora, ao relento,
cheira a flor da noite?
Mas para quê
tanto sofrimento,
se o meu pensamento
é livre na noite?

1 de fev. de 2013

Cacto-orquídea, dama-da-noite











Nome Botânico: Epiphyllum oxipetalum (Candolle) Haworth Sin.: Cereus oxypetalum Moc.& Sesee, Phyllocactus oxypetalus (de Candolle)
Nomes Populares: cacto-orquídea, dama-da-noite
Família: Família Cactaceae
Origem: Originária da América Central e Brasil.

Sempre de Chico Buarque

Eu te contemplava sempre
Feito um gato aos pés da dona
Mesmo em sonho estive atento
Para poder lembrar-te sempre
Como olhando o firmamento
Vejo estrelas que já foram
Noite afora para sempre

O teu corpo em movimento
Os teus lábios em flagrante
O teu riso, o teu silêncio
Serão meus ainda e sempre

Dura a vida alguns instantes
Porém mais do que bastantes
Quando cada instante é sempre

http://www.youtube.com/watch?v=OhIB-vYy_Qw

31 de jan. de 2013

Laranja, orange, naranja, taronja, portocaliu, zoranj







Lento mas vem de Mario Benedetti


Lento mas vem 
o futuro se aproxima 
devagar
mas vem

hoje está mais além
das nuvens que escolhe
e mais além do trovão
e da terra firme

demorando-se vem 
qual flor desconfiada 
que vigila ao sol 
sem perguntar-lhe nada

iluminando vem 
as últimas janelas 

lento mas vem 
o futuro se aproxima 
devagar
mas vem

já se vai aproximando 
nunca tem pressa 
vem com projetos 
e sacos de sementes

com anjos maltratados 
e fiéis andorinhas

devagar mas vem 
sem fazer muito ruído 
cuidando sobretudo 
os sonhos proibidos

as recordações dormidas 
e as recém-nascidas

lento mas vem 
o futuro se aproxima 
devagar
mas vem

já quase está chegando
com sua melhor notícia 
com punhos com olheiras 
com noites e com dias

com uma estrela pobre 
sem nome ainda 

lento mas vem
o futuro real 
o mesmo que inventamos 
nós mesmos e o acaso

cada vez mais nós mesmos 
e menos o acaso

lento mas vem 
o futuro se aproxima 
devagar
mas vem

lento mas vem 
lento mas vem 
lento mas vem


fonte: Perguntas ao acaso. Tradução de Julio Luís Gehlen

Edward Hopper


 







Edward Hopper (Nyack, 22 de julho de 1882 — 15 de maio de 1967) foi um pintor norte-americano conhecido por suas misteriosas pinturas de representações realistas da solidão na contemporaneidade.

30 de jan. de 2013

Para Maria da Graça – Paulo Mendes Campos


Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
fonte: Primeiras leituras: crônicas.  Boa Companhia, 2012 

29 de jan. de 2013

Evadir-me, esquecer-me de Sophia de Mello Breyner Andresen


Evadir-me, esquecer-me, regressar

À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.



Obra Poética I

Caminho

Os Três Mal-Amados de João Cabral de Melo Neto

Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...