14 de fev. de 2013

As patas do pátio de Fabrício Carpinejar


Todas as xícaras de minha avó, porcelana francesa, apresentavam a asa quebrada. Dava uma pena ver as peças trincadas. Perguntei para vó quem fez aquele estrago, louco para condenar um parente e conquistar a intimidade da tristeza. A vó riu sozinha: "fui eu!". Pegou uma chave pequeníssima, presa em seu colar, e abriu a gaveta a mostrar uma pilha de asas de xícaras. "Assim as xícaras nunca serão roubadas".

Andy Warhol


12 de fev. de 2013

Crepom cor-de-rosa de Clarice Lispector


Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

11 de fev. de 2013

Chovendo na Roseira de Tom Jobim



Olha está chovendo na roseira
Que só dá rosa mas não cheira
A frescura das gotas úmidas
Que é de Luisa
Que é de Paulinho
Que é de João
Que é de ninguém

Pétalas de rosa carregadas pelo vento
Um amor tão puro carregou meu pensamento

Olha um tico-tico mora ao lado
E passeando no molhado
Adivinhou a primavera

Olha que chuva boa prazenteira
Que vem molhar minha roseira
Chuva boa criadeira
Que molha a terra
Que enche o rio
Que limpa o céu
Que traz o azul

Olha o jasmineiro está florido
E o riachinho de água esperta
Se lança em vasto rio de águas calmas

Ah, você é de ninguém
Ah, você é de ninguém

10 de fev. de 2013

Aviamento de Livia Garcia Roza

Aviam-se desejos. Tratar aqui.


Rosas, rosinhas.








Matizes: o fio da meada, o avesso e o círculo do bastidor






















Aprendemos a bordar com uma mãe bordadeira clássica, que fazia suas artes entre os afazeres domésticos, seguindo modelos de panos de amostra, com pontos já definidos, como tantas bordadeiras. Com ela aprendemos a descobrir as luzes, os movimentos, as formas, as cores e matizes da natureza, o que nos permitiu ter um outro olhar sobre a arte de bordar e conferir atualidade à arte milenar praticada anonimamente pelas mulheres em sua vida diária, costumeira.
Dessa aprendizagem cotidiana e antiga, passamos a fazer caminho outro, singular, escolhendo o movimento e a liberdade para criar. Adotamos um pressuposto para nortear nosso bordar: o risco é um caminho a ariscar, a escolher ou refazer. O círculo do bastidor passa a limitar a criação, e o dedal nos tira os movimentos, o avesso transforma-se em novas possibilidades.
Escolhemos então um fazer liberto de amarras e pontos marcados e limitadores. São significações nossas, mas se outras bordadeiras escolhem outros matizes e agulhas, são sentidos e significados de alteridade ao criar.
A vida vivida é o fio da meada que ao longo de tantos anos nos liga e nos possibilita criar, fazer com as mãos, com a emoção e com a alma a nossa arte. Fizemos uma opção de arte que tem como eixo a linha da imaginação solta – “que nosso imaginário nos guie é o que falamos para nós mesmas cada vez que iniciamos um projeto.”

fonte: http://www.matizesbordadosdumont.com/portu/familia.asp

9 de fev. de 2013

Mário de Sá-Carneiro, Último Soneto


Iris de Van Gogh 

Pensei que fosse o meu o teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Mário de Sá-Carneiro, Último Soneto, in Indícios de Oiro (1937)

8 de fev. de 2013

Entendimento de Fernando Sabino




Sentaram-se no banco e se calaram, tentando entender o silêncio. 
As palavras tinham um sentido além delas mesmas. 
O silêncio seria, sempre, o único meio de entendimento perfeito.

Fernando Sabino in: 0 Encontro Marcado

Casaco Marrom de Danilo Caymmi, Renato Corrêa, Guttemberg Guarabyra



Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom
Tomar a mão da alegria e sair
Bye bye, Cecy "nous allons"
Copacabana está dizendo que sim
Botou a brisa à minha disposição
A bomba "H" quer explodir no jardim
Matar a flor em botão
Eu digo que não
Olhando a menina
De meia estação
Alô coração,
Alô coração, alô coração
Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom

7 de fev. de 2013

Outro poema dos dons : Jorge Luis Borges


Quero dar graças ao Divino
Labirinto dos efeitos e das causas 
Pela diversidade das criaturas 
Que formam este singular universo, 
Pela razão, que não cessará de sonhar 
Com um plano do labirinto, 
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses, 
Pelo amor que nos deixa ver os outros 
Tal como os vê a divindade, 
Pelo firme diamante e pela água solta, 
Pela álgebra, palácio de precisos cristais, 
Pelas místicas moedas de Ângelus Silesius, 
Por Schopenhauer, 
Que talvez tenha decifrado o universo, 
Pelo fulgor do fogo 
Que nenhum ser humano pode olhar sem
um assombro antigo, 
Pela carnaúba, o cedro e o sândalo, 
Pelo pão e pelo sal, 
Pelo mistério da rosa, 
Que prodiga cor e que não a vê, 
Por certas vésperas e dias de 1955, 
Pelos rijos tropeiros que na planura 
Arreiam os animais e a aurora, 
Pelas manhãs de Montevidéu, 
Pela arte da amizade, 
Pelo último dia de Sócrates, 
Pelas palavras que num crepúsculo foram ditas 
De uma cruz a outra cruz, 
Por aquele sonho do Islã que abarcou 
Mil noites e uma noite, 
Por aquele outro sonho do inferno, 
Da torre do fogo que purifica 
E das estrelas gloriosas, 
Por Swedenborg, 
Que conversava com os anjos nas ruas de Londres, 
Pelos rios secretos e imemoriais 
Que convergem em mim, 
Pelo idioma que, faz séculos, falei
na Nortúmbria, 
Pela espada e pela harpa dos saxões, 
Pelo mar, que é um deserto resplandecente 
E um número de coisas que não sabemos, 
Pela música verbal da Inglaterra, 
Pela música verbal da Alemanha, 
Pelo ouro, que resplende nos versos, 
Pelo épico inverno, 
Pelo título de um livro que não li: 'Gesta Dei per Francos', 
Por Verlaine, inocente como os pássaros, 
Pelo prisma de cristal e o pêndulo de bronze, 
Pelas listras do tigre, 
Pelas altas torres de São Francisco e da Ilha de Manhattan, 
Pela manhã no Texas, 
Por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral 
E cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos, 
Por Sêneca e Lucano, de Córdoba, 
Que antes do espanhol escreveram 
Toda a literatura espanhola,
Pelo jogo de xadrez, geométrico e bizarro, 
Pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce, 
Pelo cheiro medicinal dos eucaliptos, 
Pela linguagem, que pode simular a sapiência, 
Pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado, 
Pelo hábito, 
Que nos repete e confirma como um espelho, 
Pela manhã, que nos depara a ilusão de um começo, 
Pela noite, sua treva e sua astronomia, 
Pela coragem e a felicidade dos outros, 
Pela pátria, percebida nos jasmins 
Ou numa espada velha, 
Por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema, 
Pelo fato de que o poema é inesgotável 
E se confunde com a soma das criaturas 
E não chegará jamais ao último verso 
E varia como os homens, 
Por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos 
Por morrer tão devagar, 
Pelos minutos que precedem o sono, 
Pelo sono e a morte, 
Esses dois tesouros ocultos, 
Pelos íntimos dons que não enumero, 
Pela música, misteriosa forma do tempo.

Tradução de Paulo Mendes Campos
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OTRO POEMA DE LOS DONES

Jorge Luis Borges

Gracias quiero dar al divino Laberinto de los efectos y de las causas
Por la diversidad de las criaturas que forman este singular universo,
Por la razón, que no cesará de soñar con un plano del laberinto,
Por el rostro de Elena y la perseverancia de Ulises,
Por el amor, que nos deja ver a los otros como los ve la divinidad,
Por el firme diamante y el agua suelta,
Por el álgebra, palacio de precisos cristales,
Por las místicas monedas de Ángel Silesio,
Por Schopenhauer, que acaso descifró el universo,
Por el fulgor del fuego,
Que ningún ser humano puede mirar sin un asombro antiguo,
Por la caoba, el cedro y el sándalo,
Por el pan y la sal,
Por el misterio de la rosa, que prodiga color y que no lo ve,
Por ciertas vísperas y días de 1955,
Por los duros troperos que en la llanura arrean los animales y el alba,
Por la mañana en Montevideo,
Por el arte de la amistad,
Por el último día de Sócrates,
Por las palabras que en un crepúsculo se dijeron de una cruz a otra cruz,
Por aquel sueño del Islam que abarcó mil noches y una noche,
Por aquel otro sueño del infierno,
De la torre del fuego que purifica 
Y de las esferas gloriosas,
Por Swedenborg, que conversaba con los ángeles en las calles de Londres,
Por los ríos secretos e inmemoriales que convergen en mí,
Por el idioma que, hace siglos, hablé en Nortumbria,
Por la espada y el arpa de los sajones,
Por el mar, que es un desierto resplandeciente
Y una cifra de cosas que no sabemos 
Y un epitafio de los vikings,
Por la música verbal de Inglaterra,
Por la música verbal de Alemania,
Por el oro, que relumbra en los versos,
Por el épico invierno,
Por el nombre de un libro que no he leído: Gesta Dei per Francos,
Por Verlaine, inocente como los pájaros,
Por el prisma de cristal y la pesa de bronce,
Por las rayas del tigre,
Por las altas torres de San Francisco y de la isla de Manhattan,
Por la mañana en Texas,
Por aquel sevillano que redactó la Epístola Moral
Y cuyo nombre, como él hubiera preferido, ignoramos,
Por Séneca y Lucano, de Córdoba
Que antes del español escribieron 
Toda la literatura española,
Por el geométrico y bizarro ajedrez
Por la tortuga de Zenón y el mapa de Royce,
Por el olor medicinal de los eucaliptos,
Por el lenguaje, que puede simular la sabiduría,
Por el olvido, que anula o modifica el pasado,
Por la costumbre, que nos repite y nos confirma como un espejo,
Por la mañana, que nos depara la ilusión de un principio,
Por la noche, su tiniebla y su astronomía,
Por el valor y la felicidad de los otros,
Por la patria, sentida in los jazmines, o en una vieja espada,
Por Whitman y Francisco de Asís, que ya escribieron el poema,
Por el hecho de que el poema es inagotable
Y se confunde con la suma de las criaturas 
Y no llegará jamás al último verso 
Y varía según los hombres,
Por Frances Haslam, que pidió perdón a sus hijos por morir tan despacio,
Por los minutos que preceden al sueño,
Por el sueño y la muerte, esos dos tesoros ocultos,
Por los íntimos dones que no enumero,
Por la música, misteriosa forma del tiempo.

Amarelo giallo yellow amarillo jaune flava






Uma situação ímpar de Clarice Lispector


Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

- Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.
fonte: Visão do esplendor. Francisco Alves, 1975. p. 99

5 de fev. de 2013

Esmeralda, émeraude, emerald, smarald, smaragdno, Zümrüt


















Poesia de Paulo Henriques Britto

A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme  inacessível?
Vejamos só os anúncios.

São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.

4 de fev. de 2013

Entrega de Livia Garcia Roza


Quando entregamos todo o coração o perdemos para sempre.

Romance de Chico Buarque



Te seqüestrei
Vou te reter pra sempre
Na minha idéia
No teu lugar, talvez
Fique alguma tonta, uma dublê
Uma mulher alheia

Na minha idéia
Vives plenamente
És a pessoa
Com todas as canções
Os momentos bons e as horas más
Que a memória coa

Nas horas à toa
Às vezes ando a cismar
Serei eu mesmo
Este cantor confuso
Que te rodeia
Ou estarei feliz
Sendo eternamente o que já fui
Dentro da tua idéia


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...