Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
6 de jan. de 2014
5 de jan. de 2014
Idos Sidos :: Darcy Ribeiro (1922-1997)
Que é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.
Minhas mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.
Não sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.
As árvores, tantíssimas, que vi,
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.
Diante das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.
Quem sou eu, septuagenário,
Que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.
Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.
4 de jan. de 2014
3 de jan. de 2014
Depois de muita e boa chuva de Adélia Prado
Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.
2 de jan. de 2014
Carece de aprender de Guimarães Rosa
“Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o bêco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? Lengalenga. Fomos, fomos. (…) O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
In: Grande Sertão: Veredas, páginas 280 e 290)
In: Grande Sertão: Veredas, páginas 280 e 290)
O pão de Rui Costa
Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.
a nuvem prateada das pessoas graves. quasi, 2005
1 de jan. de 2014
Um lugar, quero um lugar! de Mahmoud Darwich
Trecho de "Les deux moitiés de l’orange", carta escrita durante o exílio em Paris a Samih al-Kassem, seu amigo residindo na Palestina.
31 de dez. de 2013
Cantiga de embalar :: Rainer Maria Rilke
Matizes - Namoro
Gostava de cantar a alguém uma cantiga de embalar,sentar-me a seu lado, e ficar sossegado.Gostava de embalar-te murmurando uma canção,estar contigo na orla do sono.Ser a única pessoa acordada em casaa saber que a noite está fria.Gostava de ouvir cá dentro e lá fora,ouvir-te, ouvir o mundo e os bosques.Os relógios tocam a rebate,e podes ver o tempo até ao fim escoar-se.Ao fundo da rua um estranho passae incomoda o cão de um vizinho.Por trás, o silêncio. Pousei os meus olhosem ti como numa mão aberta,e eles prendem-te ao de leve e deixam-te ir,quando algo se move no escuro
30 de dez. de 2013
REFLEXIVO. :: Affonso Romano de Sant'Anna
Remedios Varo, 1958
O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.
O lado esquerdo do meu peito: livro de aprendizagens. Rocco, 1992. p. 212
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