4 de set. de 2014

D. Esteves (Dennis Esteves )













A noite :: Sophia de Mello Breyner Andresen

Piroska Szanto, 1959

A noite abre os seus ângulos de lua
E em todas as paredes te procuro
 
A noite ergue as suas esquinas azuis
E em todas as esquinas te procura
 
A noite abre as suas praças solitárias
E em todas as solidões eu te procuro
 
Ao longo do rio a noite acende as suas luzes
Roxas verdes e azuis
Eu te procuro

In: Poemas escolhidos. Companhia das Letras.

3 de set. de 2014

Uma voz - Ferreira Gullar

 Georges Braque, 1953

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando

A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

2 de set. de 2014

Eliza Piro ( Adelaide, Austrália)

















O POETA AO ESPELHO, BARBEANDO-SE :: José Paulo Paes

Paul Ward

o rito
do dia
o ríctus
do dia
o risco
do dia

EU?
UE?

olho
por olho
dente
por dente
ruga
por ruga

EU?
UE?

o fio
da barba
o fio
da navalha
a vida
por um fio

EU?
UE?

mas a barba
feita
a máscara
refeita
mais um dia
aceita

EU
EU

do livro: Poesia completa.  Companhia das Letras.

1 de set. de 2014

O vestido branco - Clarice Lispector

   James McNeill Whistler, 1864  

Acordei de madrugada desejando ter um vestido branco. E seria de gaze. Era um desejo intenso e lúcido. Acho que era a minha inocência que nunca parou. Alguns, bem sei, já até me disseram, me acham perigosa.. Mas também sou inocente. A vontade de me vestir de branco foi o que sempre me salvou. Sei, e talvez só eu e alguns saibam, que se tenho perigo tenho também uma pureza. E ela só é perigosa para quem tem perigo dentro de si. A pureza de que falo é límpida: até as coisas ruins a gente aceita. E tem um gosto de vestido branco de gaze. Talvez eu nunca venha a tê-lo, mas é como se tivesse, de tal modo se aprende a viver com o que tanto falta. Também quero um vestido preto porque me deixa mais clara e faz minha pureza sobressair. É mesmo pureza? O que é primitivo é pureza. O que é espontâneo é pureza. O que é ruim é pureza? Não sei, sei que às vezes a raiz do que é ruim é uma pureza que não pôde ser.
     Acordei de madrugada com tanta intensidade por um vestido branco  de gaze, que abri meu guarda-roupa. Tinha um branco, de pano grosso e decote arredondado. Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.
     E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.
In: A descoberta do mundo. Nova Fronteira, 1984. p. 104.

31 de ago. de 2014

AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS :: Wislawa Szymborska

Mel Bochner, 2012
Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves

30 de ago. de 2014

ELEGIAZINHA :: NELSON ASCHER (São Paulo, 1958)

Picasso

ELEGIAZINHA

[i. m. nikita (gata da Inês)]


Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

In: Parte alguma.  Companhia das Letras. 

29 de ago. de 2014

Flor Jade, Mucunã


























Mucuna  (Adans. 1763)
taxonomia:  Leguminosae Papilionoideae Phaseoleae Mucuna
gênero de plantas da subfamilia Faboideae e da Phaseoleae.
Planta trepadeira cujas flores são polinizadas por morcegos ou seja, o pólen é transportado dos estames de uma flor para o estigma de outra enquanto se alimentam de seu néctar.
Cerca de 105 espécies
feijão  Bengala M. pruriens (L.) DC.
feijão  búfalo Mucuna Adans.
feijão Maurício  M. pruriens (L.) DC.
Mucuna Mucuna Adans.
mucuna M. pruriens (L.) DC.
distribuição:
pantropical ( Ásia e na China,  Austrália; África, Madagascar e Mascarenhas;na região neotropical, centrada na América Central  e Caribe. )
hábito: Principalmente lianas
Ecologia: Várzea tropical úmida , floresta tropical, muitas vezes costeira
etimologia: Derivado do tupi  brasileiro "Mucuna" dado a essas plantas.

Kindergarten :: Manuel António Pina


Konstantin Makovsky, 1882

As filhas brincam fora de o quê,
que infinitamente se interroga?
O fora de elas é dentro
 de que exterior centro?
 Quem está lá aqui
assistindo a isto e a mim,
 e às filhas brincando e ao jardim?
 Que coisa essencial em qualquer sítio perdi?
Também eu ou alguém brincou há muito tempo
em outro jardim, brincando.
 Sem que palavras lá estando?
Fora de que memória não me lembrando?



28 de ago. de 2014

COISAS CONCRETAS :: MIREN AGUR MEABE

Paul Gauguin, 1883
Estou sentada na cozinha, enquanto a massa ferve.

Amo as coisas concretas
descobrir seus nomes ao pequeno-almoço:
despertador, chuva na calçada, supermercado,
beijos na siesta,
um copo de vinho, amigos,
as pequenas mãos de meu filho,
pessoas na praça,
tu...

Elas produzem as mais doces e lânguidas cócegas,
como um banquete após o jejum.
Parece-me impossível afastar-me de tais coisas:
colam-se à minha caneta e parece que não consigo sacudi-las.

No entanto,
as coisas concretas não permitem atrasos,
e a massa já está pronta.
Assim é a vida.
Quando o semear do poema começava a germinar,
eis que o mundano vem intrometer-se.
E lá tenho eu que me levantar da mesa,
enquanto a sombra de um bilioso humor assenta.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...