Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
26 de out. de 2014
25 de out. de 2014
Foi assim :: Constança Lucas
Foi assim que te disse adeus
nem sabias
numa tarde depois, numa tela
soube que teria de me despedir
não para sempre, apenas uma parte de mim
onde os amigos se sentem
mesmo a magoar dizem
não consegues
parte de ti ficou na primeira camada
as tintas que vieram cobriram-te
as horas não são as mesmas
Queria despedir-me sem mágoa
sem esta tristeza arrepiante
insistente em dar-se aos outros
antes em nada querer
hoje o cansaço está grande
tenho que te dizer tanta coisa
tenho que te dizer das cores
tenho que te dizer dos corpos
tenho que te dizer adeus
Voltarei a falar contigo
os dois seremos outros
e sim as horas serão mais parecidas
um outro abraço
de mundos em construção
deixados os receios nos bolsos
em continentes abraçados
tenho que te dizer as palavras
tenho que te dizer os novos caminhos
tenho que te dizer até já
24 de out. de 2014
Até Pensei :: Chico Buarque
Tattoomaus78
Junto à minha rua havia um bosque
Que um muro alto proibia
Lá todo balão caia, toda maçã nascia
E o dono do bosque nem via
Do lado de lá tanta aventura
E eu a espreitar na noite escura
A dedilhar essa modinha
A felicidade morava tão vizinha
Que, de tolo, até pensei que fosse minha
Junto a mim morava a minha amada
Com olhos claros como o dia
Lá o meu olhar vivia
De sonho e fantasia
E a dona dos olhos nem via
Do lado de lá tanta ventura
E eu a esperar pela ternura
Que a enganar nunca me vinha
Eu andava pobre, tão pobre de carinho
Que, de tolo, até pensei que fosses minha
Toda a dor da vida me ensinou essa modinha
23 de out. de 2014
Caixa de fósforos :: Laura Esquível
foto: Carlos Porto
A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos (...) de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada; a vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos (...). Cada pessoa tem de descobrir quais são os seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se dá quando um deles se acende é que alimenta a alma de energia.22 de out. de 2014
Gato num apartamento vazio :: Wislawa Szymborska (Kórnik, 2 de Julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012)
Morrer não é coisa que se faça a um gato.
Que há-de um gato fazer
num apartamento vazio?
Subir às paredes?
Roçar-se nos móveis?
Aparentemente não mudou nada
e no entanto está tudo mudado.
Continua tudo no seu lugar
e no entanto está tudo fora do sítio.
E à noite a lâmpada já não está acesa.
Ouvem-se passos nas escadas,
mas não são os mesmos.
A mão que põe o peixe no prato
também já não é a que o punha.
Há aqui qualquer coisa que já não começa
à hora do costume,
qualquer coisa que não se passa
como deveria passar-se.
Havia aqui alguém que há muito estava e estava
e que de repente desapareceu
e agora insistentemente não está.
Procurou-se em todos os armários,
revistaram-se as estantes,
espreitou-se para debaixo do tapete.
Violou-se até a proibição
de desarrumar os papéis.
Que mais se pode fazer?
Dormir e esperar.
Quando regressar, ele vai ver,
ele vai ver quando chegar.
Vai ficar a saber
que isto não é coisa que se faça a um gato.
Caminhar-se-á em direcção a ele
como que contrariado,
devagarinho,
com patas amuadas.
E nada de saltos ou mios. Pelo menos ao princípio.
Tradução do poeta Manuel António Pina
Que há-de um gato fazer
num apartamento vazio?
Subir às paredes?
Roçar-se nos móveis?
Aparentemente não mudou nada
e no entanto está tudo mudado.
Continua tudo no seu lugar
e no entanto está tudo fora do sítio.
E à noite a lâmpada já não está acesa.
Ouvem-se passos nas escadas,
mas não são os mesmos.
A mão que põe o peixe no prato
também já não é a que o punha.
Há aqui qualquer coisa que já não começa
à hora do costume,
qualquer coisa que não se passa
como deveria passar-se.
Havia aqui alguém que há muito estava e estava
e que de repente desapareceu
e agora insistentemente não está.
Procurou-se em todos os armários,
revistaram-se as estantes,
espreitou-se para debaixo do tapete.
Violou-se até a proibição
de desarrumar os papéis.
Que mais se pode fazer?
Dormir e esperar.
Quando regressar, ele vai ver,
ele vai ver quando chegar.
Vai ficar a saber
que isto não é coisa que se faça a um gato.
Caminhar-se-á em direcção a ele
como que contrariado,
devagarinho,
com patas amuadas.
E nada de saltos ou mios. Pelo menos ao princípio.
Tradução do poeta Manuel António Pina
Caricia :: Mario Benedetti
Fernand Khnopff
1La caricia es un lenguaje
si tus caricias me hablan
no quisiera que se callen
2
La caricia no es la copia
de otra caricia lejana
es una nueva versión
casi siempre mejorada
3
Es la fiesta de la piel
la caricia mientras dura
y cuando se aleja deja
sin amparo a la lujuria
4
Las caricias de los sueños
que son prodigio y encanto
adolecen de un defecto
no tienen tacto
5
Como aventura y enigma
la caricia empieza antes
de convertirse en caricia
6
Es claro que lo mejor
no es la caricia en sí misma
sino su continuación
21 de out. de 2014
É duro ter coração mole... Alice Ruiz
Lindie Racz
por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado, pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração...
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