10 de jan. de 2015

DISCURSO DE NOIVADO APÓS O JANTAR:: HANS MAGNUS ENZENSBERGER (Kaufbeuren, Alemanha 1929)


Este eu, um recipiente, que
desde que ninguém o abra,
parece compacto, liso
como um ovo Kinder,
quase apetitoso. Somente lá,
no interior, está escuro. Quem sabe
o que estará dentro, à tua espera.
Obsessões, sem dúvida,
hábitos enferrujados,
medos incompreensíveis,
truques em segunda mão,
desejos infantis.
Que tu a desejes ter,
a esta prenda embrulhada,
roça o milagre.

9 de jan. de 2015

Lembranças :: Manuel António Pina


1. Deveria lembrar-me de lembranças minhas, mas lembro-me de lembranças alheias (lembranças de pessoas que nunca conheci nem nunca me conheceram).

2. Um dia, há muitos anos, cruzei-me na rua comigo numa cidade estrangeira. Recordo agora, do lado de fora, esse instante.

in Todas as palavras - poesia reunida

7 de jan. de 2015

5 de jan. de 2015

A DESPEDIDEIRA : MIA COUTO


" ( ...) Há muito tempo , me casei , também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou, já não deixou a mim . Que eu já era outra , habilitada a ser ninguém . Às vezes , contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem . Lembro o tempo em que me encantei , tudo era um princípio . Eu era nova , dezanovinha .
Quando ele me dirigiu palavra , nesse primeiríssimo dia , dei conta de que , até então , eu nunca tinha falado com ninguém . O que havia feito era comerciar palavra , em negoceio de sentimento . Falar é outra coisa , é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes , suspensos sobre o abismo . Falar é outra coisa , vos digo . Dessa vez , com esse homem , na palavra eu me divinizei .
Como perfume em que perdesse minha própria aparência .Me solvia na fala insubstanciada .
embro desse encontro , dessa primogénita primeira vez . Como se aquele momento fosse , afinal , toda minha vida . Aconteceu aqui , neste mesmo pátio em que agora o espero .
(.....)
Nesse mesmo pátio em que se estreava meu coração tudo iria , afinal acabar . Porque ele anunciou tudo nesse poente .
Que a paixão dele desbrilhara . ( ...)
Pedi-lhe que viesse uma vez mais . Para que , de novo , se despeça de mim . E passados os anos , tantos que já  nem cabem na lembrança , eu ainda choro como se fosse a primeira despedida . Porque esse adeus , só esse aceno é meu , todo inteiramente meu .
Um adeus à medida de meu amor . Assim , ele virá para renovar despedidas . Quando a lágrima
escorrer no meu rosto eu a sorverei , como quem bebe o tempo .Essa água é , agora , meu único alimento . Meu último alento . Por isso , refaço a despedida .
Seja esse o modo de o meu amor se fazer eternamente nosso ."


in:  O Fio das Missangas.


4 de jan. de 2015

Gosto da noite :: Florbela Espanca





Ekaterina Panikanova ( San Pietroburgo  1975 )

Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!

Florbela Espanca

3 de jan. de 2015

CANTO NONO :: TONINO GUERRA


Van Gogh

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

In: O Mel. Tradução de Mário Rui de Oliveira. Assírio e Alvim, 2004

1 de jan. de 2015

Tenho: Livia Garcia Roza

Fernand  Khnopff

Tenho no olhar um outro dia.
                                         

31 de dez. de 2014

FIM DE ANO ::

Salvador Dali

Nem o pormenor simbólico
de substituir um dois por um três
nem essa vã metáfora
que convoca um lapso que morre e outro que surge,
nem o cumprimento de um processo astronómico
atordoam ou minam
o planalto desta noite
e obrigam-nos a esperar
as doze irreparáveis badaladas.
A causa verdadeira
é a suspeita geral e confusa
do enigma do Tempo;
é o assombro em face do milagre
de que apesar de todos os acasos,
de que apesar de sermos
as gotas do rio de Heraclito,
perdure em nós alguma coisa:
imóvel,
alguma coisa que não encontrou o que procurava.

30 de dez. de 2014

Vôo :: Cecília Meireles


Alheias  e nossas as palavras voam. 
Bando de borboletas multicores, as palavras voam 
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, 
as palavras voam. 
Viam as palavras como águias imensas. 
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as 
palavras voam. 
E às vezes pousam.

Melhores Poemas, Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil

29 de dez. de 2014

Mônica Figueiredo :: bordados e versos
























Me chamo Mônica Beatriz Pereira da Silva Figueiredo. Mônica Figueiredo é o que pegou. Não sei se muita gente conhece este Beatriz aí, que aliás, eu adoro. Chico Buarque e Edu Lobo tem uma das canções mais lindas do mundo chamada “Beatriz” que eu acho que é para mim. Já fiz muitos bordados com seus versos (e não tenho nenhum deles comigo, acabei de me dar conta disto!)  “Diz se é perigoso a gente ser feliz” ou “Para sempre é sempre por um triz”. Tudo rima com Beatriz e com a minha vida.
http://ateliemonicafigueiredo.com.br/pages/os-bordados-sou-eu

Poema de Wislawa


Para os filhos, pela primeira vez o fim do mundo.
Para o gato, novo dono.
Para o cachorro, nova dona.
Para os móveis, escadas, rangidos, caminhão, transporte.
Para a parede, quadrados brancos depois de retirados os quadros.
Para os vizinhos do térreo, um tema, um intervalo no enfado.
Para o carro, seria melhor se fossem dois.
Para os romances, poesia -de acordo, leve o que quiser.
Pior para a enciclopédia e o videocassete
e para aquele manual de escrita
onde se encontram talvez as regras de uso dos nomes compostos - se ainda os liga a conjunção "e"
ou se os separa um ponto final.

De "Tutaj" (Aqui), 2009

28 de dez. de 2014

Véu :: NOEMIJAFFE

Odile Redon

theodor adorno disse a conhecida frase: "escrever poesia depois de auschwitz é um ato bárbaro". embora esta frase estivesse dentro de um contexto maior e não seja tão restritiva quanto parece, ainda assim, e sem ter vivido nada sequer semelhante àquilo, ouso dizer que, depois de auschwitz, só é possível escrever poesia. como a língua ficou manca diante do uso que dela foi feito, como se tornou impossível falar sobre o indizível em língua de homens, a única língua possível é aquela do incomunicável, do incomunicante, do que não tem como objetivo a impossível comunicação. para falar das coisas como coisas só é possível dizer, como paul celan: "deixa-nos respirar o véu que nos esconde um do outro".

27 de dez. de 2014

VERMEER :: Wislawa Szymborska

Vermeer

Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum,
em quietude pintada e concentração, 
dia após dia, não verter o leite 
do jarro para a vasilha,
o Mundo não merece 
o fim do mundo. 

26 de dez. de 2014

O Sul :: Jorge Luis Borges


De um dos teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
e do banco da sombra ter olhado
essas luzes dispersas
que a minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o cheiro do jasmim, da madressilva,
o silêncio do pássaro a dormir,
o arco do saguão, a umidade
- essas coisas talvez sejam o poema.

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EL SUR
Desde uno de tus patios haber mirado

las antiguas estrellas,
desde el banco de
la sombra haber mirado
esas luces dispersas
que mi ignorancia no ha aprendido a nombrar
ni a ordenar en contelaciones,
haber sentido el circulo del agua
en el secreto aljibe,
el olor del jazmin y la madreselva,
el silencio del pájaro dormido,
el arco del zanguán, la hemedad
–esas cosas, acaso, son el poema.

de la edición 1969 de Fervor de Buenos Aires

25 de dez. de 2014

Não serei o poeta de um mundo caduco :: Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Sentimento do mundo. Rio de Janeiro : Pongetti, 1940.

24 de dez. de 2014

Poema de Natal :: Vinicius de Moraes


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente

os menores carregam o mundo :: Mar Becker

em todas as espécies, os menores suportam-no com seus braços poucos e seus humilhados ombros  como algumas flores breves como as que não dur...