3 de set. de 2015

Se eu fosse eu :: Clarice Lispector




















Joseph Beuys


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou se ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova do desconhecimento. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Jornal do Brasil. 30 de novembro de 1968



2 de set. de 2015

Transumância










A transumância é o deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições durante uma parte do ano. O termo associa-se geralmente a deslocações de gado ovino, sendo também aplicado aos deslocamentos de colmeias de um local para outro a seguir à época da floração. Por associação, a transumância pode ainda referir-se às migrações sazonais dos pastores ou de populações inteiras que se dedicam à pastorícia que acompanham os animais transumantes.
A transumância estival ou ascendente, também chamada transumância normal, que é a subida para as pastagens montanhosas de rebanhos originários da planície. Na Europa esse período vai, em geral, do começo de junho a fins de setembro.
A transumância invernal, ou transumância invertida ou descendente, que ocorre quando rebanhos de montanha fogem do rigor do inverno dos climas de altitude e descem às planícies temperadas.
A transumância pernal, que ocorre quando os rebanhos não dão conta de fazer suas pernas (crias), então o rebanho foge para sua terra natal, em busca de vida.[necessário esclarecer]
Transumância no Brasil
No Brasil, embora a palavra transumância (ercolae) seja, em geral, restrita apenas a estudos científicos, a prática é muito conhecida, frequentemente associada à expressão invernada, em quase todas as regiões do país. O queijo canastra da serra homónima é um produto resultante da transumância do gado, levado ao alto da serra no período invernal, alimentando-se as vacas com os brotos do nativo capim gordura, de aroma intenso e elevada concentração proteica, dando origem a um produto sazonal de qualidade apreciada, que tem como objetivo, mandar os rebanhos para longe da serra, que de tal forma, ajuda no produto da transumância do gado. No sertão nordestino a palavra transumância é conhecida como "goiabada migrativa".

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Erte

Perseguida pelo medo da velhice, deixei envelhecer a nossa relação. Ocupada em me fazer bela, deixei escapar a verdadeira beleza, que apenas mora no desnudar do olhar. O lençol esfriou, a cama se desaventurou. Esta é a diferença: a mulher que encontraste aí, em África, fica bela apenas para ti. Eu ficava bela para mim, que é um outro modo de dizer: para ninguém.
É isso que essas negras têm que nunca podemos ter: elas são sempre o corpo inteiro. Elas moram em cada porção do corpo. Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nó, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma, ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa.
Mia Couto . Antes de Nascer o Mundo. Companhia das Letras, 2009. p. 135

1 de set. de 2015

Canto aos bordadores de Cachemir :: Cecília Meireles


Finos dedos ágeis
como beija-flores,
voais sobre as sedas,
sobre as lãs macias,
com finas agulhas,

ó bordadores,
semeiais primaveras
recolheis primores.

Os jardins do mundo
aos vossos bordados
não são superiores

ó bordadores,
e voais, finos, dedos,
para longe, sempre
para novas sedas,
como beija-flores,
com o bico luzente
de finas agulhas,
ó bordadores,
atirando fios,
aos fios do arco-íris,
recolhendo cores,
desenhando pontos,
inventando flores
que não morrem nunca,
ó bordadores,
de sol nem de chuva
nem de outros rigores.


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...