Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
4 de abr. de 2017
3 de abr. de 2017
Orquídeas Miltássia
A miltássia é o cruzamento da Miltonia com a Brassia.
Miltonia de clima frio são originários dos Andes na Colômbia, Panamá e Equador. As de clima quente, são as Miltonias originárias de Minas Gerais no Brasil e são próximas dos Oncidiuns.
Luz: Deve ser relativamente sombreada. Luz direta queimam as finas folhas em curto período de tempo. Entretanto os do clima quente ( 2.000 velas) preferem mais luz que os do clima frio (1.200 velas).
Temperatura: é crítico para os do clima frio. A menos que a temperatura seja mantida abaixo de 27ºC elas não florescem. A temperatura mínima é de 10ºC a 13ºC. As de clima quente requerem temperatura mínima de até 16ºC e acima de 32ºC com a umidade de 70% a 75%.
Umidade: deve ser de pelo menos 70% porque elas requerem água em abundância. Menos umidade as plantas ficam estressadas e podem adoecer.
Rega: Deve ser abundante e o substrato deve drenar perfeitamente. No seu habitat nativo as plantas drenam diariamente e por causa disto, elas são intolerantes ao acumulo de sais. Quando não recebem água ou umidade suficiente as folhas tendem a desenvolver-se plissadas como acordeom.
Adubação: Adubar a cada 2 semanas com a metade da concentração indicada pelo fabricante. Pode reduzir a frequência 4 semanas durante o inverno. A formulação 10-30-20 é benéfica para o início da primavera para estimular a floração.
Replantio: deve ser feita após o final da floração e quando novos brotos começarem a surgir. Miltoniopsis devem ser replantada todos os anos elas não toleram substratos velhos. As Miltonias tendem a ser mais tolerantes, entretanto é melhor replantá-las.
Brassia é um género botânico pertencente à família das orquídeas (Orchidaceæ) e à subtribo Oncidiinae. Foi descrito pelo botânico inglês Robert Brown em Hortus Kewensis; The second edition 5: 215, em 1813, usando a Brassia maculata, que fora recentemente coletada na Jamaica, como espécie tipo. A maioria das espécies produz flores de perfume agradável, especialmente durante as horas quentes do dia.
O nome deste gênero é uma homenagem a William Brass, cujo nome latinizado é Gulielmus Brassus, um inglês, ilustrador de botânica do século XIX.
Desde a criação do gênero, cerca de oitenta plantas foram classificadas como Brassia. Em 1972 Norris Williams dividiu o gênero em dois removendo a secção da Brassia glumacea para o gênero Ada que é um gênero de transição entre Aspasia e Brassia. Espécies com flores quase sempre muito parecidas com a do último gênero, dele se diferenciam por apresentarem inúmeras folhas dísticas, mais inflorescências por pseudobulbo, e também por apresentarem grandes brácteas florais infladas, ausentes nos outros.
As Brassia são parentes próximas também de Miltonia das quais se diferenciam principalmente pelo fato de na maioria das espécies as pétalas e sépalas de suas flores serem longamente acuminadas ou mesmo caudadas.
fonte: http://orquidariorecreio.blogspot.com.br/2014/02/miltassia-royal.html
2 de abr. de 2017
LÁZARO :: Sylvia Plath
Pairava em tudo uma saudade imensa...
No azul, suspensa,
A lâmpada da lua pelejava...
E era o céu como um dossel
Que se arqueava
Sobre a terra escrava
De Israel!
Embalsamava os ares
O aroma dos pomares
Em flor...
Descansava o rebanho,
Descansava o pastor...
E havia no ar como que um som estranho,
Som que vinha de longe e soluçava ali...
Eram ecos, talvez, de uma velha cantiga...
Era – quem sabe? – o som de uma harpa triste e antiga,
A harpa do rei Davi!
Ecoavam salmos, cânticos, além...
E era a cidade: Jerusalém!
Rica de torres, majestosa
À simples vista,
Mas, na verdade, sórdida, leprosa,
Dura, egoísta:
Gema do oriente,
Resplandecente,
Preciosa,
Contendo jaças, porém:
Amando o vício, o jogo, os vinhos;
Lembrando a rosa,
Pelo esplendor, pelos espinhos,
Era assim Jerusalém!
Lázaro, o ressuscitado,
Tinha delírios, alucinações...
E nessa noite imaginou-se ao lado
De cortesãs lascivas,
Tendo a graça irrequieta dos pavões!
Entre os vários convivas
Do lúbrico festim,
Notavam-se opulentos mercadores,
Sacerdotes hebreus,
Escribas, fariseus,
Graves doutores,
Membros do Sinhedrim...
Toda essa gente
Prestava um culto ardente
Àquelas
Cortesãs,
Ébrias de pompas vãs,
Vindas, talvez, da poeira das vielas
E ostentando tesouros,
Esmeraldas, rubis, topázios e outros,
Símbolos caros da vaidade humana
Nos rútilos anéis, nos cordões do pescoço,
Com graça soberana...
E todas elas
Eram belas,
Como a Samaritana
A quem Jesus pedira a água do poço!
E Lázaro, feliz, sorvia em cada lábio
O mel de uma ilusão,
Seguindo o exemplo
Do rei pomposo e sábio,
O sábio Salomão,
Que teve a glória de erigir o Templo,
Para acabar os dias
Na febre das orgias,
Trocando Deus, e o céu, que Deus habita,
Por um beijo sensual de Sulamita!
E uma dessas esplêndidas mulheres
A Lázaro falou: “Venceu-te Satanás!
A bacanal preferes
À eterna glória, à eterna paz!”
E ele, sereno e brando,
Esta resposta audaz,
Solene e fria,
Deu, penetrando
Nos labirintos da filosofia:
“A vida é flor maravilhosa,
Incomparável flor...
E a morte é treva horrorosa?
É treva ou resplendor?
Eis o mistério profundo,
Que atordoa o mundo!
Acaso a morte será
A nuvem tapando o sol
De outro arrebol?
Tudo termina aqui? Tudo começa lá?
É a morte, enfim, a própria vida,
Repetida,
Perpetuada?
Não creio nas palavras do Messias:
Eu morto estive, as mãos inertes, frias,
E não me lembro de ter visto nada...
Alma não vi de réprobos, malditas,
Almas aflitas
E condenadas a suplício eterno,
À danação do inferno!
Asas de querubins, asas em plena glória,
Não conservo a memória
De ter podido vê-las
Serenas, na amplidão,
Por sobre o turbilhão
De mundos e de estrelas!
Em tais anjos, decerto,
Os meus olhos não pus,
E por isso não sei se fica longe ou perto
O céu – poema de luz,
O céu – pouso final,
Promessa de Jesus,
Anseio universal...”
O poema acima foi extraído do artigo de Antônio Carlos Secchin sobre a obra poética de Júlio Salusse (SECHIN, 1993, 184-185).
No azul, suspensa,
A lâmpada da lua pelejava...
E era o céu como um dossel
Que se arqueava
Sobre a terra escrava
De Israel!
Embalsamava os ares
O aroma dos pomares
Em flor...
Descansava o rebanho,
Descansava o pastor...
E havia no ar como que um som estranho,
Som que vinha de longe e soluçava ali...
Eram ecos, talvez, de uma velha cantiga...
Era – quem sabe? – o som de uma harpa triste e antiga,
A harpa do rei Davi!
Ecoavam salmos, cânticos, além...
E era a cidade: Jerusalém!
Rica de torres, majestosa
À simples vista,
Mas, na verdade, sórdida, leprosa,
Dura, egoísta:
Gema do oriente,
Resplandecente,
Preciosa,
Contendo jaças, porém:
Amando o vício, o jogo, os vinhos;
Lembrando a rosa,
Pelo esplendor, pelos espinhos,
Era assim Jerusalém!
Lázaro, o ressuscitado,
Tinha delírios, alucinações...
E nessa noite imaginou-se ao lado
De cortesãs lascivas,
Tendo a graça irrequieta dos pavões!
Entre os vários convivas
Do lúbrico festim,
Notavam-se opulentos mercadores,
Sacerdotes hebreus,
Escribas, fariseus,
Graves doutores,
Membros do Sinhedrim...
Toda essa gente
Prestava um culto ardente
Àquelas
Cortesãs,
Ébrias de pompas vãs,
Vindas, talvez, da poeira das vielas
E ostentando tesouros,
Esmeraldas, rubis, topázios e outros,
Símbolos caros da vaidade humana
Nos rútilos anéis, nos cordões do pescoço,
Com graça soberana...
E todas elas
Eram belas,
Como a Samaritana
A quem Jesus pedira a água do poço!
E Lázaro, feliz, sorvia em cada lábio
O mel de uma ilusão,
Seguindo o exemplo
Do rei pomposo e sábio,
O sábio Salomão,
Que teve a glória de erigir o Templo,
Para acabar os dias
Na febre das orgias,
Trocando Deus, e o céu, que Deus habita,
Por um beijo sensual de Sulamita!
E uma dessas esplêndidas mulheres
A Lázaro falou: “Venceu-te Satanás!
A bacanal preferes
À eterna glória, à eterna paz!”
E ele, sereno e brando,
Esta resposta audaz,
Solene e fria,
Deu, penetrando
Nos labirintos da filosofia:
“A vida é flor maravilhosa,
Incomparável flor...
E a morte é treva horrorosa?
É treva ou resplendor?
Eis o mistério profundo,
Que atordoa o mundo!
Acaso a morte será
A nuvem tapando o sol
De outro arrebol?
Tudo termina aqui? Tudo começa lá?
É a morte, enfim, a própria vida,
Repetida,
Perpetuada?
Não creio nas palavras do Messias:
Eu morto estive, as mãos inertes, frias,
E não me lembro de ter visto nada...
Alma não vi de réprobos, malditas,
Almas aflitas
E condenadas a suplício eterno,
À danação do inferno!
Asas de querubins, asas em plena glória,
Não conservo a memória
De ter podido vê-las
Serenas, na amplidão,
Por sobre o turbilhão
De mundos e de estrelas!
Em tais anjos, decerto,
Os meus olhos não pus,
E por isso não sei se fica longe ou perto
O céu – poema de luz,
O céu – pouso final,
Promessa de Jesus,
Anseio universal...”
O poema acima foi extraído do artigo de Antônio Carlos Secchin sobre a obra poética de Júlio Salusse (SECHIN, 1993, 184-185).
1 de abr. de 2017
Colhereiro-americano, Aiaiá, ajajá, Ajaia (Platalea ajaja)
Classificação científica
Reino: Animalia
Filo: Chordata
Classe: Aves
Ordem: Pelecaniformes
Ciconiiformes
Família: Threskiornithidae
Subfamília: Plateinae
Género: Platalea
Espécie: P. ajaja
Nome binomial
Platalea ajaja
Linnaeus, 1758
Sinónimos
O colhereiro (Platalea ajaja), também chamado aiaiá e ajajá, por vezes é classificado no género monotípico Ajaia. É uma ave pelecaniforme da família Threskiornithidae. Habita a América do Sul, o Caribe e a costa sudeste dos Estados Unidos.
Etimologia
"Colhereiro" é uma alusão ao seu bico, que tem o formato de uma colher. "Aiaiá", "ajajá", Platalea ajaja e Ajaia ajaja vêm do tupi aya'yá.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
31 de mar. de 2017
PASSAGEM DAS HORAS:: Fernando Pessoa - Álvaro de Campos
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi — ...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?
Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...
Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.
Por isso se para mim materna, ó noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...
Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu castelã, tu, dona pálida, vem...
22-5-1916
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 26c.
1ª versão: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi — ...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?
Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...
Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.
Por isso se para mim materna, ó noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...
Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu castelã, tu, dona pálida, vem...
22-5-1916
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 26c.
1ª versão: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.
30 de mar. de 2017
Que existe uma receita, a norma dum caminho certo :: Guimarães Rosa
Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador — sua parte, que antes já foi inventada, num papel...
Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas. Nova Fronteira, 2001. p. 500
Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas. Nova Fronteira, 2001. p. 500
29 de mar. de 2017
Futuro :: Noemi Jaffe
o celular me avisa que não tenho nenhum lembrete futuro. mas gostaria de tê-los. gostaria que o futuro me mandasse lembretes sobre como ele terá sido passado. que o futuro sentisse saudades de não ter acontecido ainda. que ele dissesse: não venha agora não, que por aqui as coisas estão complicadas. ou então o contrário: você não imagina como está bom por aqui, aguardo sua chegada ansioso. que ele indicasse o caminho mais longo para eu seguir até chegar nele. ou então que ele se tocasse da sua inexistência e entendesse que, quando ele chegar, ele não será nada. que ele saísse do aviso do celular e ficasse sossegado lá, sem me encher o saco.
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