Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
24 de jan. de 2018
23 de jan. de 2018
22 de jan. de 2018
Homem-tração :: DALILA TELES VERAS DALILA TELES VERAS Dalila (Isabel Agrela) Teles Veres, Natural do Funchal, Ilha da Madeira, Portugal, (1946), vive no Brasil desde 1957
Sebastião Salgado
colhem
latas, caixas, vidros, papéis
(miserável quinhão
no latifúndio consumísta)
brancaleônicas figuras
recolhem e carregam
(penas - carga brutal)
carregam e caminham
caminham e descarregam
(elas próprias, descartes
menos-valia
não armazenável
ração restrita à hora
incerta e presente)
18 de jan. de 2018
16 de jan. de 2018
Ilha :: Olinda Beja (Guadalupe, São Tomé e Príncipe, 1946 )
David Burliuk
Tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de corais e praias sem fim
que chora e repete na longa distância
os dias e as horas que me deu na infância
tenho as canoas correndo na alma
e bebo em orgias vinho de palma
na roça à noite varrendo o terreiro
eu falo e discuto com piadô feiticeiro
santo é o seu nome e santa é a gente
que as ilhas povoam bendito o seu ventre
tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de floresta de mato capim
que chora e repete no porto de abrigo
os dias e as horas que eu trouxe comigo
Arte poética :: Jorge Luis Borges
Coubert
Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,
na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.
Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,
na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.
Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
..............
Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.
Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,
ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.
A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.
Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.
También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.
.......................
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. Companhia das Letras, 2008.
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.
Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,
ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.
A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.
Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.
También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.
.......................
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. Companhia das Letras, 2008.
15 de jan. de 2018
Amizade de Fernando Esteves Pinto
Naturalmente que a amizade constrói em cada um de nós
múltiplos compartimentos que nos protegem da solidão.
Agora, ao sentir uns passos teus no pensamento,
apercebo-me de que o meu edifício sentimental
abre as suas portas, como se este movimento romantizado
revelasse um fragmento incómodo que alguma presença
impusesse por erro.
Intensas portas o encerram sem um único sinal habitável.
Não há solidão mas pedras sobre pedras.
Não há palavras mas outros caminhos
a partir das palavras.
Ele permanece no seu anel
mas é a totalidade que atinge o universo.
8 de jan. de 2018
Galope :: OMAR SALOMÃO
Keith Haring
quando tudo parar de girar
eu vou correr a praia
procurando os destroços
salto do píer
vasculho fundo
atrás de vestígios, segredos
(pedaços íntimos de um quebra-cabeça esquecido)
remendos nesse barco sem leme
improviso pá em remo
e à medida que a água entra
água e sal
mar e suor
miro firme o horizonte
o impossível horizonte
miro o ponto mais distante
tudo é caminho,
e remo,
e cavo,
e cavo,
e remo
7 de jan. de 2018
Mila:: Calos Heitor Cony (1926-2018)
Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou.
Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento?
Amá-la — foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.
Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu "fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era uma lady, uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.
No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim.
Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela.
Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade.
O texto acima foi publicado no jornal "Folha de São Paulo" , edição de 04-06-1995, e faz parte do livro "Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha", Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 318, organização de Arthur Nestrowski.
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