1 de mai. de 2018

O operário no mar :: Carlos Drummond de Andrade

Ronnie Landfield

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão.
Sim, quem sabe se um dia o compreenderei? 

27 de abr. de 2018

O universo não se dividia:: Eduardo Affonso

O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.

A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe.  Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.

Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.

Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.

Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se Francês: godê, plissê, cotelê, croqui.  Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou Latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die. 

Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, o pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.

Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.

Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.

O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete:  não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.

O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.

O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.

Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.

Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi - não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.

O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.

25 de abr. de 2018

Resíduo :: Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945
© Graña Drummond

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...