10 de mar. de 2019

Feira dos milagres :: Wislawa Szymborska

Um milagre comum:
isso de acontecerem muitos milagres comuns.
.
Um milagre normal:
no silêncio da noite
o latido de cães invisíveis.
.
Um milagre entre tantos:
uma nuvenzinha etérea e pequena
que consegue ocultar a lua grande e pesada.
.
Vários milagres em um:
o amieiro refletido na água
estar virado da esquerda para a direita,
crescer ali com a copa para baixo
e não atingir nunca o fundo,
embora a água seja rasa.
.
Um milagre na ordem do dia:
vento leve a moderado,
tempestuoso nas tormentas.
.
Um primeiro milagre melhor:
as vacas são vacas.
.
Um outro não pior:
este e não outro pomar
desta e não outra semente.
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Um milagre sem fraque nem cartola:
pombas brancas levantando voo.
.
Um milagre — pois como chamá-lo:
o sol hoje nasceu às três e catorze
e vai se pôr às vinte mais um minuto.
.
Um milagre que não causa tanto espanto quanto devia:
há na verdade menos de seis dedos na mão,
porém mais de quatro.
.
Um milagre, é só olhar em volta:
o mundo onipresente.
.
Um milagre extra, como extra é tudo:
o inimaginável
é imaginável.

.
Tradução Regina Przybycien



8 de mar. de 2019

Lia:: Ana Sky

LIA -Como é seu nome?
. -Lia.
. -Lia com y ou com i, com ou sem h no final?
. -L-I-A. Bem simples, como o final da palavra “melancolia”.
.

Era assim que a moça chegava, com a melancolia como carta de apresentação.

Num lugar de si onde não pensava que pensava, pensava que seu nome tinha sido herança da tristeza de sua mãe. Não achava ruim. Sempre fora apaixonada pelos olhos tristes de sua mãe. Eram olhos cor de amêndoas. Outro dia ela foi escrever uma receita de sobremesa a uma amiga e escreveu amendor. Nem ligou. O amor pelos olhos maternos era tão imenso que se esparramou por outros amores, e assim, Lia vivia se apaixonando por pessoas que, rapidamente ela descobria que tinham uma longa história de tristeza pela vida.  Gente com preguiça de viver, com um desinteresse crônico pelas alegrias, gente com um desgosto enorme por si, gente que ela acreditava poder salvar, mas das quais tinha que sempre, em certo ponto, se afastar, pra não afundar junto.

Um dia, ao pedir um café, o atendente lhe perguntou, com a canetinha e o copo de plástico na mão. .
-Como é seu nome? .
-Lia. -Lia como uma flexão do verbo ler? .
-Oi? Como assim? .
-É. Eu lia, tu lias, ele/ela lia.

Então, dez milhões de fichas caíram dentro dela. E ainda que ela não tivesse percebido toda essa movimentação interior, Lia passou, desde então, a se sentir mais leve. Se Lia fizesse análise, teria descoberto que passou a vida toda achando que se identificava com os olhos tristes da mãe, quando, na verdade, se identificava era com a despedida da tristeza que trocava de lugar com a alegria, nos olhos da mãe, quando lia para a filha.

Surpresa :: Clarice Lispector

John William Waterhouse

Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, 
com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.
Laços de Família. Editora Rocco, 1998. p. 19

16 de fev. de 2019

Só na beleza criada pelos outros ::Adam Zagajewski

Só na beleza criada pelos outros 
existe consolação, na música
e nos poemas dos outros
Só os outros nos podem salvar,
mesmo que a solidão tenha o sabor
do ópio. Não são o inferno, os outros,
se os espreitarmos de manhã, quando
têm a testa limpa. lavada pelos sonhos.
Por isso cismo muito sobre a palavra
que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»
é uma traição a qualquer «tu», mas,
em troca, um poema de alguém fielmente
oferece uma fresca, moderada conversa.

Sombras de Sombras. Tinta da China.

15 de fev. de 2019

À ESPERA DOS BÁRBAROS :: Constantino Kaváfis (1863-1933)



O que esperamos na ágora reunidos?

      É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      Que leis hão de fazer os senadores?
      Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

      É que os bárbaros chegam hoje.
      O nosso imperador conta saudar
      o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
      um pergaminho no qual estão escritos
      muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

      É que os bárbaros chegam hoje,
      tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

      É que os bárbaros chegam hoje
      e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

      Porque é já noite, os bárbaros não vêm
      e gente recém-chegada das fronteiras
      diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
                    [Antes de 1911]

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...