2 de abr. de 2019

Um corpo :: Ana Suy

O que fazer com um corpo?
Sobreviver!
Respirar, comer, excretar
Doer, parar de doer, voltar a doer
Parar de doer, doer
Nomear uma dor que não dói
Como prazer

O que fazer com um corpo?
Dançar!
Rodar, saltar, fazer-um com o som
Doer, esquecer que dói, lembrar de novo
Parar de doer, doer
Descobrir que o que doía antes não dói mais e chamar isso
De alegria

O que fazer com um corpo?
Amar!
Desejar, beijar, abraçar
Se perder no corpo do outro, se angustiar com a perda de si, desejar não mais amar
Doer, doer mais ainda, doer um pouco menos, doer muito menos
E descobrir que se dói menos
A dois

O que fazer com um corpo?
Escrever!
Escorrer letras pelos dedos, doar caminhos às palavras, deixar cair as pontuações
Permitir-se guiar pela dor, descobrir que a dor tem fim, querer retornar à dor para escrever
Entender que a vontade de retornar à dor já é uma dor, por si só
Descobrir que não é um corpo que escreve, mas é algo que se escreve em
Um corpo.

31 de mar. de 2019

El viaje definitivo :: Juan Ramón Jiménez

Ir-me-ei embora. E ficarão os pássaros
Cantando.
E ficará o meu jardim com sua árvore verde
E o seu poço branco.

Todas as tardes o céu será azul e plácido,
E tocarão, como esta tarde estão tocando,
Os sinos do companário.

Morrerão os que me amaram
E a aldeia se renovará todos os anos.
E longe do bulício distinto, surdo, raro
Do domingo acabado,
Da diligência das cinco, das sestas do banho,
No recanto secreto do meu jardim florido e caiado
Meu espírito de hoje errará nostálgico...
E ir-me-ei embora, e serei outro, sem lar, sem árvore

Verde, sem poço branco,
Sem céu azul e plácido...
E os pássaros ficarão cantando.
....

Y yo me iré. Y se quedarán los pájaros
cantando;
y se quedará mi huerto, con su verde árbol,
y con su pozo blanco.

Todas las tardes, el cielo será azul y plácido;
y tocarán, como esta tarde están tocando,
las campanas del campanario.

Se morirán aquellos que me amaron;
y el pueblo se hará nuevo cada año;
y en el rincón aquel de mi huerto florido y encalado,
mi espíritu errará nostáljico…

Y yo me iré; y estaré solo, sin hogar, sin árbol
verde, sin pozo blanco,
sin cielo azul y plácido…
Y se quedarán los pájaros cantando.

Juan Ramón Jiménez
in:  «Corazón en el viento», en Poemas agrestes, 1910-1911.

29 de mar. de 2019

Eu nasci para estar calado : Mia Couto



Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. (...)
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim era dom natural, herança de algum antepassado.

Mia Couto . Antes de Nascer o Mundo. Companhia das Letras, 2009. p. 13

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...