15 de nov. de 2019

Seiscentos e Sessenta e Seis :: Mário Quintana


A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas…
Quando se vê, já é 6.ª feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente …

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Mario Quintana , Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 2005.

Nota: Publicado originalmente no livro "Esconderijos do Tempo".

11 de nov. de 2019

ESCADA :: Eucanãa Ferraz

De transformar-se o amador na coisa amada
transformam-se o pescador em peixe o capitão
em arma em piano o pianista em desastre
o equilibrista o arquiteto desaparecido
quem sabe converteu-se em luz no livre
alto vão da escada
e como ela em espiral
transformam-se em madrugada a namorada
em ácido o químico em mágica o mágico em livro
o bibliotecário em poeta o poema o poema em água
e por virtude de muito imaginar hoje sou você
graça – de ver em mim a parte desejada.

Eucanãa Ferraz. Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

10 de nov. de 2019

Fui para domingo de manhã.

          Van Gogh - Still Life Pink Roses
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. 
Domingo de manhã também é a rosa da semana. 
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.


Clarice Lispector  in "Para não Esquecer"

29 de out. de 2019

As árvores e os livros :: Jorge Sousa Braga


As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras. 
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras*. 


in Herbário, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999
*sardineira: gerânios 

24 de out. de 2019

Fome : Josué de Castro











Pelo Brasil afora se tem a idéia apressada e simplista de que o fenômeno da fome no Nordeste é produto exclusivo da irregularidade e inclemência de seu clima. De que tudo é causado pelas secas que periodicamente desorganizam a economia da região. Nada mais longe da verdade. Nem todo o Nordeste é seco, nem a seca é tudo, mesmo nas áreas do sertão. Há tempos que nos batemos para demonstrar, para incutir na consciência nacional o fato de que a seca não é o principal fator da pobreza ou da fome nordestinas. Que é apenas um fator de agravamento agudo desta situação cujas causas são outras. São causas mais ligadas ao arcabouço social do que aos acidentes naturais, às condições ou bases físicas da região.
Josué de Castro. Geografia da Fome. 8ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...