17 de abr. de 2020

CARNAVAL CARIOCA DE MARIO DE ANDRADE : carta para Manuel Bandeira


"Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! […] Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. […] Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora se gastou. Manuel, sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo se serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitar-te. Estou perdoado." 
MORAES, M. A.(org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2002, pp.84-85.

13 de abr. de 2020

A beleza que se diz :: Valter Hugo Mãe


Van Gogh 
"(...) só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. (...) Ainda que as palavras sejam débeis. As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza. Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa."
 in : A desumanização. Porto Editora, 2014.

10 de abr. de 2020

Um homem em sua vida :: Yehuda Amichai


Um homem não tem tempo em sua vida
para ter tempo para cada coisa.
Ele não possui momentos suficientes para ter
um momento para cada coisa. O Eclesiastes
Estava errado a esse respeito.

Um homem precisa amar e odiar no mesmo instante,
rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e ajuntar as pedras,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
arranjar e confundir, comer e digerir
o que a história
leva anos para fazer.

Um homem não tem tempo.
Quando ele perde ele busca, quando ele encontra
esquece, quando esquece ele ama, quando ama
começa a esquecer.

E sua alma amadurece, sua alma
é muito profissional.
Apenas seu corpo permanece para sempre
um amador. Comete erros e acerta,
perturba-se, não aprende nada,
bêbado e cegado por seus prazeres
e suas dores.

Ele morrerá como os figos morrem no outono,
Enrugado e cheio de si mesmo e doçura,
as folhas ressecando no solo,
os galhos nus apontando para o lugar
onde há tempo para todas as coisas.

Tradução .: Pedro Gonzaga

Um homem e a Sua Vida ( poema para tempos escassos):: Yehuda Amichai

Um homem não tem tempo na sua vida

para ter tempo para tudo.

Não tem momentos que cheguem para ter

momentos para todos os propósitos. Eclesiastes

está enganado acerca disto.


Um homem precisa de amar e odiar no mesmo instante,

de rir e chorar com os mesmos olhos,

com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,

de fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.

E de odiar e perdoar e lembrar e esquecer,

de planear e confundir, de comer e digerir

que história

leva anos e anos a fazer.


Um homem não tem tempo.

Quando perde procura, quando encontra

esquece, quando esquece ama, quando ama

começa a esquecer.


E a sua alma é erudita, a sua alma

é profissional.

Só o seu corpo permanece sempre

um amador. Tenta e falha,

fica confuso, não aprende nada,

embriagado e cego nos seus prazeres

e nas suas mágoas.


Morrerá como um figo morre no Outono,

Enrugado e cheio de si e doce,

as folhas secando no chão,

os ramos nus apontando para o lugar

onde há tempo para tudo.

9 de abr. de 2020

Rita Lee e a quarentena


"Eu, que pago para não sair de casa, que só saio da toca em caso de emergência, tenho algumas dicas para você se distrair enquanto estiver em isolamento forçado. Há 8 anos vivo enfurnada e há sempre coisas interessantes para fazer.

Nada melhor do que ter a companhia de bichos, que oferecem serenidade e alegria: cuidar e brincar com animais faz o tempo passar de maneira mais divertida. Arranjar uma mudinha de planta e acompanhar o crescimento dela é emocionante. Aproveite e plante em vasinhos: cebolinha, salsinha, tomates-cereja... até alface. Descole uma orquídea, ainda com brotinhos, para acompanhar o desabrochar, lindamente, dia a dia.

Espalho telas e tintas sobre uma mesa e me arrisco a pintar alguma coisa, mexer com cores dá uma alegria na cabeça enquanto escuto músicas que me fazem feliz. Tenho feito tricô, fabrico mantas para os bichos usarem quando o inverno chegar. Escrevi uma letra vudu sobre o coronavírus e fiz uma música punk para combinar com a noia que acontece: chama-se ‘Vírus do horror’.

Faço minhas unhas e pinto de várias cores. Pratico feldenkrais por skype para meu corpo não enferrujar. Assisto séries diversas e filmes antigos na TV. Outro dia matei a saudade de um clássico dos anos 1950, ‘O dia em que a Terra parou’, bem no clima de hoje. E, é claro, sempre rola um filme de James Dean no salão.

Escolhi passar apenas 3 horas por dia acompanhando as notícias do coronavírus, mais do que isso fico deprê. Depois, acendo velas e incensos na frente do meu altarzinho com todo tipo de divindades. Peço, em especial, para Nossa Senhora Aparecida proteger o Brasil com seu manto milagroso.

Ando fuçando minha biblioteca, escolhendo livros que já li e esqueci. Arrumo gavetas, jogo fora um monte de traquitanas inúteis que acumulei ao longo dos anos. Fico namorando e limpando minha coleção de cristais phantom e meus pesos de papel. Lavo as mãos duzentas vezes por dia cantando ‘Parabéns a você’ e estou viciada em passar álcool gel, hábitos modernos.

Tenho a sorte de morar numa casinha no meio do mato com meu namorado e passeamos pelo jardim conversando com as plantas. Acabei de escrever um livro e não consigo defini-lo: se é um diário, citações esquisitas, autoajuda a mim mesma ou nonsenses da minha cabeça.

Pego o violão e noto que esqueci como tocar a maioria das minhas músicas. O que me deixa mais triste é não poder receber visitas dos meus filhos e netos, mas nada que um facetime não resolva provisoriamente.

Minha impressão é a de que nesse confinamento forçado que a humanidade está sendo obrigada a passar há um propósito Divino. Um teste para que aqueles que sobreviverem a essa guerra invisível se conscientizem de que o planeta Terra está realmente sendo destruído pelos donos do poder de cada país. E que se não modificarem radicalmente seus comportamentos em todas as áreas, aí, sim, será a Terceira Guerra derradeira. Saúde física, mental, psicológica e espiritual para todos!”

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...