20 de jul. de 2020

Poema Concreto de Thiago de Mello


Pedro Ruiz

O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso, 
perdida nos teus escuros, 
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes, 
mas que é tua vida, 
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens. 

13 de jul. de 2020

Al-Mu'tamid, "Só eu sei ..."




Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.

Al-Mutamid Alã-l-lãh ibn 'Abbãd Abu-l-Qasin Muhammad nasceu em Beja (Portugal) em 1040 e morreu em Agmat (Marrocos) em  1095.
Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".

8 de jul. de 2020

Gato num apartamento vazio :: Wislawa Szymborska

Morrer  isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada

mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa

na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.

As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,

espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre as patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.

Poemas. Companhia das Letras, 2011. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien

Un gato en un piso vacío : Wislawa Szymborska

Morir, eso no se le hace a un gato.

Porque qué puede hacer un gato
en un piso vacío.
Trepar por las paredes.
Restregarse entre los muebles.
Parece que nada ha cambiado
y, sin embargo, ha cambiado.
Que nada se ha movido,
pero está descolocado.
Y por la noche la lámpara ya no se enciende.

Se oyen pasos en la escalera,
pero no son ésos.
La mano que pone el pescado en el plato
tampoco es aquella que lo ponía.

Hay algo aquí que no empieza
a la hora de siempre.
Hay algo que no ocurre
como debería.
Aquí había alguien que estaba y estaba,
que de repente se fue
e insistentemente no está.

Se ha buscado en todos los armarios.
Se ha recorrido la estantería.
Se ha husmeado debajo de la alfombra y se ha mirado.
Incluso se ha roto la prohibición
y se han desparramado los papeles.
Qué más se puede hacer.
Dormir y esperar.

Ya verá cuando regrese,
ya verá cuando aparezca.
Se va a enterar
de que eso no se le puede hacer a un gato.
Irá hacia él
como si no quisiera,
despacito,
con las patas muy ofendidas.
Y nada de saltos ni maullidos al principio.

6 de jul. de 2020

Nasce uma orquídea de Carlos Drummond de Andrade



“Entre as desesperanças da hora, e à falta de melhores notícias, venho informar-lhes que nasceu uma orquídea.
Nasceu, isto é, foi batizada. Seu nome de batismo é o do cronista Rubem Braga. A partir deste ano, há uma orquídea com o nome do Braga, ou, se preferem, o Braga virou orquídea.
Physosiphon Bragae Ruschi tem raízes esbranquiçadas, como Braga tem a cabeleira; seu caule primário é recoberto de bainhas agudas, como agudas são as observações que o Braga faz sobre a vida, os homens, as mulheres e as coisas. Suas flores são comumente geminadas, raramente solitárias. Aí parece haver uma contradição com a natureza do Braga, que combina solidão e geminação, mas, pensando bem, ele é um solitário orquidáceo comunicante, raramente desligado de outra flor.
Augusto Ruschi, sábio admirável, percebeu claramente a relação Braga-terra ao dedicar ao capitão a orquídea vermelho-púrpura. Não é todo mundo que merece virar nome de flor. A maioria merece justamente o contrário. No caso do Braga, se a orquídea souber, deve ficar satisfeita.”
Carlos Drummond de Andrade, “Nasce uma orquídea” , Jornal do Brasil (1970)

4 de jul. de 2020

POR QUE CANTAMOS :: Mario Benedetti

Se cada hora vem com sua morte

se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

1 de jul. de 2020

Prisão domiciliar :: Humberto Werneck

Em prisão domiciliar há três meses e meio, estou pensando em requerer livramento condicional. Acho que encararia numa boa até a tal tornozeleira eletrônica. Um par, caso a lei imponha isonomia ortopédica. 
Não me tome, por favor, ao pé (ou tornozelo) da letra: sem chilique ou coitadice, quero apenas que me seja permitido sair de vez em quando à rua, atividade a que me habituei, me lembro ainda, praticamente desde que aprendi a andar, e que o atual regime de reclusão veio converter em aventura temerária, numa espécie de safári urbano. Com o direito de ir, aceito o dever de vir, ou seja, de voltar à cela. De máscara, direitinho, mas sem nada de bandido mascarado. 
Falei em aventura temerária, em safári urbano, e acredite que não estou exagerando. Nesses três meses e meio, foram raras as ocasiões em que ousei abrir parênteses na rotina de encarcerado. Nenhuma delas, para meu desgosto, me levou à padoca para o semanal Café de Quinta em companhia do Ivan, do Paulo, do Edney, do João e, até recentemente, o Oswaldo, que teve a sabedoria de se mandar deste mundo antes que nele se instalasse a pandemia. Nem à livraria Zaccara, que ultimamente vinha sediando os encontros da Academia Perdiziana, não de letras, de Litros, de que já falei aqui, com direito, nas melhores noites, a canja do Tomzé, do Celso Adolfo ou do Renato Braz.
Saí três vezes apenas, e em todas experimentei um sobressalto, uma aceleração de batimentos cardíacos de contraventor em início de carreira. A primeira escapada foi para confiar ao Pedro, meu barbeiro, uma cabeleira que avançava, qual erva daninha, por sobre as orelhas, ameaçando eliminá-las da paisagem corporal. Confesso esta fraqueza: a cobertura capilar, quando excessiva, faz crescer em mim também o sentimento de que algo não vai bem no interior da caixa craniana. Se você me flagrar um dia com o coco rapado, esteja à vontade para deduzir que a situação, antes grisalha, ficou preta. 
A segunda evasão foi determinada por um acidente odontológico: como há males que vêm para o mal, em plena pandemia quebrei um molar. Sabe Deus a cautela com que venho desde então mastigando. A terceira escapada, por fim, no Dia das Mães – que, não me bastasse a orfandade, pela primeira vez passei sozinho –, pode ser em parte atribuída a um reflexo temporão do repórter que fui por tantos anos. Preparava meu café, bem cedo, quando me chegou, vindo da rua de cima, um alarido de exagerados decibéis. 
Burlando a amorosa vigilância dos filhos, enfurnados bem longe em suas tocas, enchi-me de coragem e fui, o coração aos pulos, conferir o que me parecia manifestação política em horário inusitado, no qual não é comum haver alguém já de pé pela Pátria. Não era; em frente a um prédio, desses que se chamam “Maison” ou “Château” alguma coisa, duas dezenas de pessoas tinham armado homenagem-surpresa a uma senhora, por certo mãe de alguém ali, cuja triunfal chegada à varanda pude presenciar. 
De volta à furna, levei comigo, além do desapontamento cívico, a sensação, experimentada nas ocasiões anteriores, de que me havia exposto a riscos insensatos. Será amostra disso que o pessoal deu de chamar de “novo normal”? Então vai ser assim a vida daqui para a frente? A compra de um pãozinho ali na esquina ganhará o vulto de empreitada audaciosa? Beijos e abraços serão substituídos, em caráter permanente, por cotoveladas, ainda que afetuosas? Vírus, agora, só de computador? Poliana anda dizendo que não, que tudo vai acabar bem, e mais, que “sairemos maiores” dessa pandemia. Na avaliação sombria de um nublado cupincha meu, porém, até mesmo o sexo presencial, “tá lembrando?”, não se dará doravante sem observância de severo protocolo. Como recita a claque do Capitão Cloroquina, diz ele, é bom já ir se acostumando, pois nosso autoenjaulamento preventivo “vai durar, por baixo, mais uns seis meses”. Deus não o ouça, amigo! Amigo?
***
Entre a Poliana e esse nuvem-negra, cada qual vai se ajeitando. A experiência, também aqui, é pedagógica, e ao falar dela o perigo é você resvalar para chatices de autoajuda. 
No caso dos avulsos, entre os quais me incluo, atravessar sem companhia as 24 horas do dia, cada uma delas com todos os seus 60 minutos, é coisa de acarretar, além de bocejos de tédio e surtos de melancolia, uns tantos riscos. Entre eles, o da pura e simples avacalhação da pessoa confinada: na ausência de testemunhas, pode dar-se progressiva e nem sempre consciente perda de compostura, potencialmente desastrosa lá adiante, quando enfim se restabelecer o convívio social – se é que um dia chegaremos lá, duvida o nuvem-negra. Numa dessas lives às quais ultimamente nos agarramos como náufragos – e que a alguns parecem mais interessantes que os encontros em carne e osso ora suspensos –, um conhecido contou que vem tomando mais cuidado desde o dia em que se flagrou, felizmente a tempo, quando saía de cueca para desovar o lixo no térreo. Muitos nem cueca estariam usando, observou alguém, com jeito, desconfiei, de quem falasse de si mesmo. 
De minha parte, ainda sem episódios indumentários capazes de chocar a vizinhança, tenho sentido, admito, uma necessidade do Anjo da Guarda que meus pais contrataram no meu primeiro dia, e cujos serviços, cada vez maiores, rudemente dispensei em algum degrau da adolescência. Seria bom tê-lo de volta, não mais para zelar pela higiene da alma, pois para essa já não parece haver detergente espiritual que dê conta. Um anjo da guarda, com minúsculas mesmo, para me chamar às falas se um dia, distraído, eu estiver prestes a ir ali embaixo, apanhar meu Estadão, nos mesmos trajes com que a alada & desvelada criatura me viu chegar ao mundo. Pandemia, pandemim.
Na condição de decano no condomínio onde vivo, e sendo nele o único morador na melindrosa faixa de risco, tenho sido o maluco, por ora solitário, que todos os dias, durante uma hora, se dá em espetáculo ao caminhar aceleradamente em torno dos dois predinhos do Cosme e Damião, só não tão antigos quanto o arfante, bufante, quase estertorante senhor que gira sem parar, qual hamster em gaiola, para no final contabilizar mais 5 quilômetros percorridos. Em três meses e meio, são mais de 500, suficientes para me levar, suponhamos, ao Rio de Janeiro. Taí, encaro. Mas só tem conversa se vier a tornozeleira de que já sou merecedor.

O Estado de S. Paulo, 30/6/2020

30 de jun. de 2020

TEXTOS DE SOMBRAALGUNS TEXTOS DE SOMBRA [ 1 ] :: Nina Rizzi

É uma exortação aos jovens para que
não fiquem tristes, já que existem a
natureza, a liberdade, Goethe, Schiller,
Shakespeare, as flores, os insetos, etc.
Frankz Kafka

 

Um jardim

Peço silêncio
Minha história é longa e triste como a cabeleira de Ofélia

É um jardim desenhado em meu caderno. Madrugada. Instante dilacerante
em que a luz é tentação e promessa porque algo está morto, a noite.

– Só queria ver o jardim.
– Sou meu próprio espectro.
– Não se deve julgar o espectro porque se chega a sê-lo.
– Você é real?
– A imagem de um coração que enclausura a imagem de um jardim pelo qual choro.
– Ils jouent la pièce en étranger.[1]
– Sinto o mundo chorar como língua estrangeira.
– Das ganze verkerhrte Wesen fort.[2]
– Another calling: my own words coming back…[3]

Apenas buscava um lugar mais ou menos propício para viver, quer dizer: um lugar pequeno onde cantar e poder chorar tranquila de vez em quando. Na verdade, não queria uma casa; Sombra queria um jardim.
– Só vim ver o jardim – disse.

Mas cada vez que visitava um jardim comprovava que não era o que buscava, o que queria. Era como falar ou escrever. Depois de falar ou de escrever sempre tinha que explicar:

– Não, não é isso o que eu queria dizer.
E o pior é que também o silêncio a traía.
– É por que o silêncio não existe – disse.
O jardim, as vozes, a escritura, o silêncio.
– Não faço outra coisa além de buscar e não encontrar. Assim perco as noites.
Sentiu que era culpada de algo grave.
– Eu acredito nas noites – disse.
Não soube responder a isso: sentiu que cravavam uma flor azul em seu pensamento para que não seguisse o curso de seu discurso até o fundo.
– É porque o fundo não existe – disse.
A flor azul se abriu em sua mente. Viu palavras como pequenas pedras espalhadas no espaço negro da noite. Depois, passou um cisne com rodinhas com um grande macaco vermelho no interrogativo pescoço. Uma menininha que parecia com ela montava o cisne.
– Essa menininha fui eu – disse Sombra.

Sombra está desconcertada. Diz para si mesma que, na verdade, trabalha demais desde que Sombra morreu. Tudo é pretexto para ser um pretexto, pensou Sombra assombrada.

1-V-1972

[1] Eles encenam a peça em estrangeiro.
[2] [então, a palavra misteriosa] Destruirá toda a essência mentirosa.
[3] Outro chamado: minhas próprias palavras voltando…

[1] (N.E.) Este capítulo, a citação e o texto que segue, são de uma folha datilografada e corrigida a mão por AP, em pasta com a menção INÉDITOS onde figuram também os demais sob a denominação “Textos de Sombra”, na ordem que aqui se apresentam. As frases finais de “Um jardim” pertencem a Henri Michaux, Cecilia Meireles, B. Brecht e Sydney Keyes.

Oda al pan de Pablo Neruda



E então,
Também a vida
Terá forma de pão,
Será simples e profunda,
Inumerável e pura.
Todos os seres terão direito
À terra e à vida,
E assim será o pão de amanhã,
O pão de cada boca,
Sagrado,
Consagrado,
Porque será o produto
Da mais longa e dura
Luta humana.
Não tem asas
A vitória terrestre:
Tem pão sobre os seus ombros,
E voa corajosa
Libertando a terra
Como uma padeira


Levada pelo vento.

(...)
y entonces
también la vida
tendrá forma de pan,
será simple y profunda,
innumerable y pura.
Todos los seres
tendrán derecho
a la tierra y a la vida,
y así será el pan de mañana,
el pan de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será el producto
de la más larga y dura
lucha humana.
No tiene alas
la victoria terrestre:
tiene pan en sus hombros,
y vuela valerosa
liberando la tierra
como una panadera
conducida en el viento.

.................................................


27 de jun. de 2020

Por que é importante aprender a cozinhar? Clarice Reichstul




Quando eu era criança, ia à casa da minha avó uma vez por semana. Comíamos sempre a mesma comida: frango assado, cogumelos refogados, batata na manteiga e, de sobremesa, strudel de maçã (um tipo de torta) com creme de leite.
De vez em quando, tinha um peixe frito, mas o forte mesmo era esse menu descrito aí. Nunca mais comi cogumelos refogados como os da casa da minha avó, mas esses momentos que passávamos por lá são inesquecíveis (talvez porque ela deixava a gente tomar guaraná, e a minha mãe não).
Eu aprendi a cozinhar com minha avó. Primeiro foram biscoitinhos amanteigados. Ela fazia a massa e a gente ficava cortando com os cortadores de estrela. Depois foi um estrogonofe de peixe, que ela havia ensinado ao meu pai, quando ele era pequeno.
Na época, ele precisou de uma receita para uma competição de culinária no grupo de escotismo (passou anos reclamando por ter ficado em segundo lugar). O que eu não percebia naquele momento e só fui reconhecer adulta é o quanto aprender a cozinhar é libertador.
Libertador porque não dependemos de outros para ter a nossa comida, porque eu não tenho medo de receita nenhuma e porque, quando fui morar sozinha, não passei pelo aperto de comer miojo todos os dias. Eu já sabia fritar um ovo e fazer arroz. O básico.
A formação de indivíduos independentes se faz de diversas maneiras, algumas bem comuns, como pela cozinha. Como diria a mestra Nina Horta, cozinhar é um modo de se ligar.

25 de jun. de 2020

Minha santa constância :: Noemi Jaffe

minha santa constância consoladora dos desconsolados, olhai por nós. olhai pelos cachorros peregrinando as ruas, procurando magotes de comer; olhai pela mulher que veio aqui hoje, na porta de casa, pedir dinheiro ou comida; olhai pelos velhos sozinhos, nas casas cansadas, assistindo uma tv que não pega bem; olhai pelos pipoqueiros das portas de cinema, cujos carrinhos descansam nos seus quintais; olhai pelas poltronas vazias dos cinemas e pela faxineira que tira o pó que se acumula sobre elas; olhai pelos garçons com seu paletó branco pendurado no cabide mais bonito do armário; olhai pelo garoto que guarda os carros na rua e que agora está pensando no sonho de ontem à noite; olhai pelo motorista de ônibus da linha 856R10 sentido Socorro, que acabou de parar na Rua Aurélia, onde subiu uma senhora cansada; olhai pela enfermeira Jurema, que chegou em casa agora mesmo e está preparando uma sopa reforçada com alho poró e que a faz lembrar da mãe, que mora em Uberaba: olhai pela cabeleireira que tinha finalmente comprado uma tesoura nova vinda do japão, que agora está na gaveta do criado-mudo; olhai pela dançarina de cabaré, que já repetiu o mesmo strip-tease dezesseis vezes para o seu marido; olhai também por mim, minha santa constância, para que eu também me lembre de por mais maizena no doce de ameixa e damasco para que a torta do joão possa ficar mais durinha do que ficou hoje à tarde.

23 de jun. de 2020

Poema : : Herberto Helder

irmãos humanos que depois de mim vivereis,

eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,

fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,

porque nestas idades já não nunca,

nem leituras embrumadas,

nem crenças, nem política das formas, nem poemas no futuro, nem

visitas extraterrestres de mulheres

exorbitantemente

nuas, cruas, sexuais, luminosas,

só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,

é como trabalhar: stanca,

lavorare stanca,

queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,

e só tínhamos que perder a alma,

hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,

enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!

livros, je les aí lus tous, e como de costume a carne é insondável,

estou mais pobre do que ao comêço,

e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,

meia volta, e já era,

irmãos futuros do gênio de Villon e do meu gênero baixo,

não peço piedade, apenas peço:

não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,

inclitamente vergonhosa,

que em testamento vos deixou esta montanha de merda:

o mundo como vontade e representação que afinal é como era,

como há-de ser: alta,

alta montanha de merda — trepai por ela acima até à vertigem,

merda eminentíssima:

daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,

cada qual obrando a sua própria magia:

merda que há-de medrar melhor na memória do mundo

Servidões, 2013.

22 de jun. de 2020

Somente para seus olhos de Andrea Dutra


Antonio Canova, Cupid and Psyche (detalhe), 1786-93 

eu guardo o nosso segredo como se guarda, escondida no fundo da gaveta, uma jóia dentro de uma caixa forrada de veludo, enrolada no lenço de seda. ou como se perde, entre as folhas de um livro, uma folha seca que a gente pegou no chão daquele dia especial de outono. um dia a gente abre o livro e dá de cara com a cena. guardo os instantâneos da nossa vida na retina, milhares de quadros por segundo. não tiramos nenhuma foto juntos, mesmo qdo o sol listrava de cor de rosa o céu azul do arpoador. não postamos nossos pés sujos de areia no instragram. a gente anda na rua sem dar as mãos, mas trocamos olhares. não vamos publicar nenhuma das nossas felicidades, não vamos postar nada. não temos amigos em comum, não moramos na mesma cidade. nós moramos na nuvem. agora, falamos menos. nos olhamos mais. sorrimos, e ficamos calados, lado a lado. a paz reina. qdo nos vemos vem lua vai sol vem noite vai dia. somos completamente.

21 de jun. de 2020

De Valter Hugo Mãe para Marcelino Freire:Marcelino, tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança.

Marcelino, tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança. Julgo que saio à rua ainda com a alegria de encontrar alguém com quem, de algum modo, possa pressentir a alegria que existia quando estávamos apenas a brincar. Eu não sei estar sozinho. Não aprecio a solidão, gosto das pessoas e não há como curar minha natureza para gostar delas. Mas agora tenho medo do seu país que eu amo. Fiquei toda a vida sonhando ser português e brasileiro, para pertencer a Machado de Assis e Fernando Pessoa. Sonhei que meu orgulho teria papel passado, como quem casa consciente, dedicado, de amor profundo, para toda a eternidade. Eu não previ este medo. Fico desolado.

Estão proibindo as pessoas de serem negras, Marcelino, proibiram de ser mulheres, Marcelino, agora decidiram proibir de ser criança e eu sabia que haveria alguma coisa que ainda me pegaria. Por isso, há muito que eu já brigava pelos negros e há muito que eu já brigava pelas mulheres, eu já brigava pelos viados todos e pelas pessoas sem explicação, tanta gente que só é, sem ter muito como entender ou fazer entender, e quer apenas estar em paz. Eu dei de barato tanta coisa sobre a paz que talvez tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro lugar da guerra. Sou muito despreparado. Passei pelo tempo buscando o deslumbre e vi a melhor versão de cada instante, não vi que medravam no escuro as piores intenções, os ódios que inviabilizam a humanidade. Eu, sinceramente, não vi, Marcelino.

Caminhei nessas ruas todas, tantos Estados, tantas capitais, e eu não dei conta desse ódio. Notei os sorrisos, o samba, o jeito generoso das garotas e de alguns garotos olhando para minha pouca beleza, eu notei os livros, tanta Literatura maravilhosa e a obra do Tunga e Artur Bispo do Rosário bordando as vestes para alindar seu encontro com Deus. Marcelino, no Brasil eu senti invariavelmente que Deus era possível. Sabe quando você se depara com algo perfeito e isso só pode ser graça de uma inteligência superior? Eu vi uma arara azul gigante, devia ter mais de um metro, e ela era mesmo um atributo mágico do mundo, estava livre no cimo de uma árvore na floresta amazônica.

Naquele encontro, eu consumei tudo, Guimarães Rosa e Elza Soares, Tarsila do Amaral e Fernanda Montenegro mais Marília Pêra e Walter Salles, e Darcy Ribeiro mais Heitor Villa-Lobos, e Cartola com Cildo Meireles e Adriana Varejão. Mais Gal Costa e Mônica Salmaso e Paulo Freire lendo a mão de Chico César genial. Eu entendi que Brasil significa beleza e uma profunda esperança. Juro. Parecia uma experiência mística, como se algum espírito me informasse e eu virasse um mensageiro sagrado. Eu elogiei o Brasil em todas as ocasiões porque eu acreditei, e acreditei que minha mensagem era sagrada. Você acha que um espírito me enganaria? Viria sobre mim de propósito para me iludir?

Marcelino, eu não consumei minha adultez, sou apenas um menino, fui sempre ao seu país para encontrar mais amigos e brincar um pouco de ser feliz. Lembra de gostarmos tanto de Manoel de Barros? Eu sei exatamente a razão de gostar tanto da poesia de Manoel de Barros. Ele usa pássaro e amigos e seus versos foram os melhores brinquedos. Minha história é rigorosamente igual. Não tinha muito mais. Pais, irmãos, amigos, os pássaros voando, versos. O lugar de guardar tudo é o verso. O único sentido de ter verso é amar gente e cuidar de pássaro livre.

Estão atirando sobre as crianças e alguém me diz que apenas as negras, são apenas as crianças negras, mas eu duvido que parem por aí. Nós, as crianças mais claras não estamos na linha do tiro? Nem que seja por vergonha, vamos morrer também se não dissermos nada, se não fizermos nada. E se as crianças negras viraram proibidas, que legitimidade teremos nós? Sabe, Gilberto Freyre explicou tão certinho que os portugueses são os mestiços da Europa. Eu tenho sangue árabe, africano e europeu. Sou uma porção de cada coisa e minha pena é não lembrar, só minhas células sabem.

Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente.
Você sabe a razão para rejeitarem os negros para as periferias? Eu não descobri. As casas do centro não têm tamanho para negros? Eles são maiores? Aumentam quando dormem? Quando sonham? Ficam derrubando paredes, perigando as fundações dos prédios? Eu acho que não. Eu vi um moço entrando na livraria à minha frente, coube na porta melhor do que eu. Você acha que tem alguém obrigando a que ele corra para a periferia depois de pagar o seu livro? Eu não posso acreditar. Que pena que eu não falei com ele, devia ter perguntado. Talvez me contasse de como fica infinito sonhando, ao ponto de perturbar o silêncio, tremer o prédio, causar fumo. Você já pensou se nossos sonhos também fizessem isso? Eu ia querer, Marcelino. Eu ia querer que meus sonhos fossem tão grandes. Mas sonho só com a paz. Estar sossegado com minha família e meus amigos. Notar os pássaros voando.

Marcelino, façamos uma jura de não morrer durante o plano de nos matarem. Não somos senão ternuras gigantes, guerreiros açucarados, eu entendi que nós precisamos de um pacto poético para embravecer nossa cidadania. Você, que é meu amigo e escritor que tanto admiro, não me falte nunca desse lado. Cuide de Chico Buarque e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer cabeça sã do mundo eles representam o Deus possível. Cuide de Maria Bethânia. De Sônia Braga. Diga a Davi Kopenawa e a Ailton Krenak que a floresta vai sempre amá-los, diga que a arara me garantiu. Marcelino, fico ouvindo Rodrigo Amarante e quase ainda acredito em tudo outra vez (Rodrigo é perfeito. Poderia ser a própria arara). Quase perco o medo. Vista também sua roupa de super-herói e sobreviva. Você tem de manter a maravilha do Brasil. Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente, e vamos ficar mais belos que os modelos nos filmes gringos. Vamos, sim, Marcelino.

Haveremos de devolver o futuro às crianças. E seremos sempre futuros também. Só quem desistiu passou a ocupar seu canto no passado. Marcelino, reassumo meu compromisso com a esperança. Vou escolher sempre minha vida como lugar de semente. No meu medo, Marcelino, muita coragem vai germinar.

15 de jun. de 2020

INSTRUÇÕES PARA ESQUIVAR O MAU TEMPO :: Paco Urondo (Santa Fe, Argentina 1930 - 17 de junio de 1976)

Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal comida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Diga para o lado bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Dê tudo o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos.
E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos dos garotos, que eles quererão podar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores.
E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.


12 de jun. de 2020

Dia dos Namorados


Em Paris, no Dia dos Namorados, os enamorados colocam um cadeado com seus nomes gravados na Pont des Arts, e jogam a chave no Sena, como um símbolo da força do seu amor eterno. 

10 de jun. de 2020

Olhos parados :: Manoel de Barros

Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que estão longe e ter saudades deles…
Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.
Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente já viu.
Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar uma folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto…
Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.

8 de jun. de 2020

Nomear :: Mario Quintana

Utagawa Kunisada II

A Bela e o Dragão

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos...
Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA.
E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete
agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de
boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLI, o dragão
te seguirá por toda parte como um cachorrinho...

Mario Quintana; Sapato Florido, 1948

Treino e(m) poema (um trecho) :: Kazuo Ohno

Os olhos, abertos assim. Quando o espírito,
de leve, foge por eles, lá de fora chega algo
que se assemelha a um pássaro, um pássaro
feito de espírito – será que ele conseguirá
penetrar no seu espírito sem dificuldade?
Seus olhos estão prontos para permitir sua
entrada? Quando o pássaro está prestes
a entrar, será que você dança com olhos que
o acolhem? Sempre em movimento, com
leveza – é preciso dançar com leveza para
que ele seja acolhido. Como se houvesse
uma porta de entrada e saída do espírito,
uma porta fundamental. Será que o que
nasce com isso é a sua alegria ou a sua
tristeza? O que se passa? No seu ir e vir,
o pássaro bate as asas – é a sua alma que
bate asas de alegria? Ou seria de tristeza?
A realidade muda a todo instante, não é
mesmo? Cuide bem de seus olhos, existem
danças assim, só de olhos. Veja bem, há todo
um mundo que é apenas deles. Então é isso,
vamos tentar com olhos assim.
Traduzido por Tae Suzuki
Treino e(m) poema. N-1 Edições, 2016.

1 de jun. de 2020

A palavra seda de João Cabral de Melo Neto




A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície 
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma, 
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

João Cabral de Melo Neto In: Quaderna, 1956-1959

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...